PAPAGAIOS, PIPAS OU PANDORGAS

Qualquer que seja o nome adotado, regionalmente, empiná-los sempre exerceu um certo fascínio nas crianças. Mas tão importante quanto lançá-los ao vento era o ritual de produção: Faltava dinheiro, mas sobrava entusiasmo e criatividade!

As varetas eram extraídas de caules de bambu – os mesmos que a gente usava para fazer arco e flecha, para espetar nos vasos de xaxim -, e cuidadosamente afinadas, até ficarem bem flexíveis. Fazíamos sulcos, próximos às extremidades, para melhor fixar a linha da armação.

O papel de seda era manejado com cuidado, para não rasgar nem manchar.

A cola era feita de farinha de trigo e água. A linha era, quase sempre, surrupiada da máquina de costura da mãe.

Os carretéis eram feitos com madeira de caixa de frutas – sobra das feiras-livres – e arame. Puro artesanato!

Fazê-los voar não era o maior problema... Isso, qualquer papagaio de papel-jornal fazia! Os grandes desafios eram: misturar cores, variar formas, produzir imensas “rabiolas”, para dar estabilidade; e lançar esses planadores até ao limiar da estratosfera! Que pretensão...

E lá íamos, em turma, para empiná-los na praia, nas tardes frias, mas ensolaradas, das férias de julho.

O céu virava uma festa de cores, que nos encantava e aos que observavam, de longe, sentados nos bancos da orla. Alguns se aproximavam, para dar palpites. Outros, até pediam com olhar infantil, para empinar um pouco.

Nosso maior cuidado era evitar que as pipas se aproximassem demais, e as linhas das “rabiolas” se embaraçassem.

Nosso maior orgulho era quando elas não eram mais do que pequenos pontos no céu. Mal dava para ver a linha, e as manobras e puxadas tinham efeito retardado. Era como se voássemos com elas...

Nosso maior medo era quando alguém gritava: “Cuidado! Pipa com “cerol”!”.

E logo a gente via outra turma, geralmente de meninos mais velhos e mal-encarado, manobrando seus papagaios na direção dos nossos. Não queriam voar alto, nem sonhar... Só queriam cortar, furtar ou, simplesmente, estragar o prazer dos outros! Esses eram os únicos “projetos” deles!

Era impossível não ficar irado com aquilo, mas as perdas e danos eram superados com meia dúzia de palavrões, e o retorno “à prancheta de projetos”, para novas e criativas produções. Enquanto isso os “vilões” iam se dedicar a outras atividades, como: matar passarinhos ou quebrar vidraças, com seus estilingues; colocar pedras nos trilhos, para descarrilar vagões; colocar cacos de vidro, ou tábuas com pregos, sob pneus... De certa forma, alguns deles já consolidavam traços de personalidade que os “credenciavam” para “vôos mais altos”, em rachas, fraudes... Enfim, na marginalidade: pessoal, corporativa ou político-partidária.

O tempo passou, e pouco ou nada ouvi dessa aberração chamada “cerol”, até que, num espaço de menos de um mês, os noticiários relataram duas mortes, ambas de motociclistas, mas em cidades diferentes, degolados por linhas de papagaio com “cerol”! Em um dos casos, a cabeça quase foi separada do tronco!

Dessa vez, não foram roubados sonhos de infância, mas duas vidas inteiras!

Alguém pode afirmar que duas mortes, nessas circunstâncias, são uma coincidência, um acidente, uma exceção, ou uma discrepância estatística; mas mesmo que fosse uma única morte, numa geração, não há como justificá-la, posto que a intenção de quem usa “cerol”, por princípio, é dolosa, por mais inocente e infantil que pareça.

Cabe aos pais ou responsáveis orientar e coibir seu uso, até pelas implicações legais; mas também é fundamental, como no caso dos balões, que as autoridades promovam campanhas preventivas, sobretudo nas escolas, que evitem que novos casos ocorram, que essas “exceções” se tornem mais uma terrível e impune regra, e que a “diversão” inconseqüente de uns continue a resultar na desgraça de outros!

Adilson Luiz Gonçalves

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