A culinária-miojo e a cultura macarrônica

 Para Clotilde Tavares, que, cerca de um ano atrás, propiciou com o seu “Santo Miojo", a reflexão central dessa minha crônica de hoje.

Mesmo que você goste de cozinhar, "nunca diga: desse miojo não comerei”, como se miojo e arte culinária fossem incompatíveis. Não são. O que estraga o miojo é o pozinho. Se você fizer aquele acompanhamento maravilhoso, o miojo acaba surpreendendo e revelando-se. – “Mas aí, o quê adianta o miojo, se o bom dele é a rapidez do preparo?” – perguntarão os mais afoitos. Aí é que está: para mim, o bom do miojo não é ele ficar pronto em três minutos, mas é ele vir na medida certa – uma porção de excelente proporção –, bem adequado a busca do equilibro, preocupação séria da cultura japonesa – e nesse sentido, portanto, nada macarrônica.

No entanto, a cultura-miojo não se restringe apenas à indústria alimentícia; ela também atua na indústria cultural, que tudo programa (até mesmo o limite que aguentamos ser manipulados ininterruptamente (na televisão, o formato é de uma hora, com interrupções de quinze minutos para descansar o cérebro...). Talvez não seja gratuito o nome de “cultura de massa”, pois ela achata, amassa a massa, embora essa massa nunca fique homogênia por mais amassada que seja (ainda bem que há sempre os desomogenizados...). O que a cultura de massa faz, em síntese, é passar informações rápidas, com sabor de pozinho – tecnológico e unificado. Nada de molhos diferentes ou ingredientes sofisticados. O máximo da variedade entre os sabores galinha caipira, queijo ou legumes, nos quais só trocamos mesmo é de aromatização. Nosso “livre arbítrio” é limitado às opções previamente estipuladas para nós.

Que fique bem claro, porém, ninguém se engane: dizer não ao pozinho não é rejeitar o miojo (ingenuidade acharmos que a solução seria tirá-lo do mercado; se o mercado fica, outras marcas virão – elementar meu caro Perdigão, ou minha cara Sadia); o não ao pozinho é apenas resistir à padronização que o mercado parece não oferecer, mas que na verdade impinge. Um "apenas" pequeno, sim, mas que já representa uma alternativa mais lúcida. Se escolhermos o miojo, que seja, então, pela qualidade que ele possui e não pelo defeito. A qualidade de vida é feita de milhares desses aparente insignificantes matizes. Também com relação à cultura, que se selecione nela aquilo que nos agrada ao paladar porque, digerir o que se come sem gosto ou sabor, é compactuar com a cultura pasteurizada, e engordar a indústria dos comprimidos contra a má-digestão, para dissolvermos os sapos que engolimos.

Brecht chamava de “teatro culinário” o tipo de encenação voltada exclusivamente ao entretenimento alienado, à diversão inconseqüente. Dizia ele que queria, do platéia teatral, que reagisse da mesma forma de quando ela assistia a uma partida de box, ou seja, diversão, sim, mas emocionada e participativa, com a tensão do sangue real, em vez da ilusão do de sangue cenográfico. Até aí, maravilha. Só tenho ressalvas quanto à expressão “teatro culinário”, que me parece criada por quem entende pouco de cozinha, a ponto de achar que ela, sendo uma tarefa doméstica, não requer saber para chegar ao sabor (Barthes que me perdoe a paródia de sua frase...). Sempre achei que um teatro realmente culinário nunca seria confundido com um passatempo (afinal, come-se para passar tempo?, lógico que não), mas seria encarado, isso sim, com uma alquimia cujas ciências e experiências ou ajudariam a nutrir o mundo ou a incendiá-lo.

Dizer de boca cheia "nunca desse miojo não comerei", repito, pode ser mais uma daquelas fórmulas que criamos para ter problemas futuros de consciência, se cedemos – por preguiça, curiosidade ou prazer – ao impulso de cozinhá-lo. Sem pozinho, posso até dizer "Santo miojo", que não me deixa comer demais nem de menos, e ainda faz com que eu questione tanto coisa, enquanto divirto-me inventando um novo molho - "divertimento" tenso, entre as chamas do fogão e a faca afiada com que corto os ingredientes... Depois, é só correr para o abraço, ou melhor, para o prato, feliz por ter, mesmo de forma um tanto simplória e precária, minimizado a meu modo a ação da miojenização cultural, uma das responsáveis por nos pulverizar ainda em vida, antes mesmo que viremos pó.

Leila Míccolis

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