Meus vestidos

Uma atração sem limites nos uniu, desde o primeiro olhar.

Quanto mais botões tivessem meu vestido, mais tesão sentíamos : vagarosamente ele desabotoava um a um, me olhando fixo nos olhos, cochichando obscenidades, me arrepiando, ficando mais excitado ainda.

Apesar disso, estávamos sempre em guerra. Os lençóis passavam semanas intactos . Em outras épocas, não sobrava fronha em nenhum travesseiro.

Um dia discutimos, enquanto ele arrumava a mudança. Nossos CDs, outrora misturados, divorciavam-se à medida que ele os separava em "meu" e "teu". Era chegada a hora de uma mudança de rumos em nossas vidas. Separados ou juntos? Acho que só Deus tinha essa resposta. Foram uns dois dias de discussões, planejamentos de caminhos difusos. Eu, ao contrário dele, não tenho prática nestes assuntos de separação. Fiquei magoada, mas não tive a mínima vontade de chorar. Eu só pensava: "que aconteça o que tem que acontecer". Mas me preocupava. Nossa cama sempre foi tão quente! Como meu corpo iria se acostumar à imensidão da cama vazia? Como suportar as lacunas no meu corpo, na minha alma, na minha vida? Eu haveria de preencher os espaços com objetivos outros, como meu filho, minha escrita, os amigos. Mas... E os meus botões? Os meus vestidos, quem haveria, agora, de desabotoá-los?

Ele quase implorou que eu pedisse. Então eu pedi: "Fica!". E novamente os lençóis e as fronhas foram jogados ao chão! Roupas amassadas, cobertas desalinhadas, chuveiro ligado de madrugada, sussurros e o ranger da cama, preencheram nosso silêncio.

Ele chega amanhã de viagem. Vou acordar cedo, tomar um banho e colocar um vestido cheio de botões. Quero que ele desabotoe todos, que arranque os botões, roce em meu corpo, sussurre em meus ouvidos, me arrebate na cama, me possua a alma e repita o amor declarado à distância pelo telefone. Amanhã é domingo, e eu só quero sair do quarto na segunda-feira.

Olhei para o espelho.

 

OS SAPATOS VERMELHOS

   Eu tentei entrar no quarto, na madrugada silenciosa, mas você tinha trancado o espelho. A cama suspirava levitando no meio do cômodo e as roupas dançavam ao som da chuva de verão noturno. Naquele ambiente de luz verde, adivinhei por trás da cortina as estrelas que cintilavam seus tons lilases pipocando aqui e ali, qual pequenos raios em prenúncio de tempestades.

     Tudo colaborava a configuração de um sonho dúbio, entre pesadelo e quimera, tamanha estranheza de inúmeros fatos. Não, eu não estava alterada. Nenhuma bebida, cigarro estranho, nada disso. Talvez estivesse em alfa, em Vênus, em Júpiter – meu planeta regente -, ou até mesmo em Marrakesh, papo aranha que nem arranha mais, nos dias de hoje.

     Entrei pela colcha da janela, procurei por você no guarda-roupa, nas gavetas, até mesmo em baixo da almofada da cadeira de balanço que tremia de felicidade ante o espetáculo da cena surreal. Foi então que vi a mala. No canto, enviesada, a mala vermelha. Tão velha, surrada e suja, que para ver seu rosto, tive que espaná-la com meus cabelos. Ela então se abriu em sorrisos, e colocou sobre seu corpo um par de sapatos igualmente vermelhos. Eles aplaudiram a recente liberdade, a companhia dos demais objetos, a festa instaurada no quarto, e começaram a dançar. Não um balé clássico, pois não se tratava de sapatilhas, nem pertenciam a uma bailarina. Dançaram ao som da luminária, que assobiou de ópera a tango, entoou de valsas a sambas. E o par de sapatos acompanhava tudo, flertando uma piscada pra mala, feliz com a brincadeira de “você não me pega”. Cirandei com eles, calçados em minhas mãos, no meio da roda, em rimas cantei, um réquiem para nosso amor, em despedida declamei, a voz trêmula, sem lágrimas, com a mão beijei meu príncipe e ele de novo agora é sapo.

     A mala continua no canto do quarto. Dentro, um segredo guardei. Os sapatos descansam sobre ela. Em silêncio, a festa guardada na mala, pros meus momentos de tédio e pra alegria dos seus velhos sapatos vermelhos.

Thaty Marcondes

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