O GRAMOFONE

Aos 85 anos, Apolônio era um homem desconfiado das modernidades e amante da música. Não era um sestro adquirido recentemente com a idade, vinha de antanho. Imagine que se rendeu ao automóvel somente quando o Ford Bigode já era peça de museu. Muito contrariado aposentou a alimária – a velha burra das longínquas viagens. Sem exagerar nas concessões, aboletou-se justo num fordinho desses.
Mas, decidido a romper princípios – para os mais novos mania de velho –, foi a uma loja comprar um Toca CD. Voltou animado com a novidade e dois cds para testar o bicho em casa.
Não deu sorte. Qualquer coisa não funcionou. Escusou-se dos tradicionais tapas, como fazia nos antigos aparelhos – para pegar no tranco. Levou-o na loja imediatamente. Lá ouviu o polido vendedor dizer que não podia trocar por outra a “vitrola”, como o velho chamava o Toca CD. Para isso é que existia a autorizada. Que levasse lá, ela resolveria o seu problema.
Saiu pisando em brasas. Levar em assistência técnica? Tinha muita graça. Na volta passou diante de duas delas e nem deu bolas. Eram uma gatunagem essas oficinas. Tinham fachada com linhas agressivas, cheia de vidros espelhados, front light e muitas outras modernas enganações. Pura aparência.
Chegou em casa.
Foi quando se lembrou do Joca. Havia tempos não o via. Ainda estaria vivo? Era ótimo para consertar gramofones. Se continuou na profissão, devia estar atualizado. Alguns contatos e o Joca apareceu reclamando dos achaques da idade. Tinha 90 anos.
– Imagina que fui ao médico e ele quase me matou de susto, me inventando uma tal de tuberculose. Eu olhei pra ele – que pena! Era novo o talzinho. Eu disse: “não me invente doença, doutor, que tudo que tenho é uma tísica”.
O Joca atacou o aparelho. O caso era sério.
Apolônio ajudou dizendo que o vendedor suspeitava de defeito no ‘carrossel'.
– Humm! – suspirou desanimado o Joca – Nunca pus fé nessas tecnologias. Têm muita utilidade num só treco, parece Bombril. Daqui a pouco vão querer que mostrem imagens junto com o som (referia-se ao DVD, que desconhecia).
– E tem jeito a geringonça? – sondou desanimado o Apolônio.
– Jeito tem, mas quando isso começa a estragar um leitor ótico, um ship, um hardware, um software...não pára mais. Tudo se complica.
Fez umas adaptações para funcionar melhor. Colocou um suporte sobre o carrossel, ligou fios não sei onde, e um prato de um aparelho três em um que o seu Apolônio tinha na despensa. Substituiu o leitor ótico pela agulha. Abandonou os cds. Funcionaria com o LP. Apolônio tinha muitos deles. Era uma tecnologia de transição, sujeita a falhas. Mas melhor que essas eletrônicas, não tinha dúvidas.
Não funcionou.
– É mais grave do que eu pensava – e foi para casa, prometendo voltar com algumas peças sobressalentes para novo conserto.
E voltou dias depois porque era responsável. Puxava de uma perna. Comentou com o Apolônio. A demora se explicava com o médico. Sorriu. “Velho é como carro novo, vive em revisão”, filosofou. “Ele me veio com uma tal de artrite. Eu balancei a cabeça. Coitado, que erro de diagnóstico! Você sabe que a gota é o meu inferno”.
Havia trazido um achado. Peças de uma velha vitrola. Leu nos olhos do Apolônio satisfação e reconhecimento. Fez emendas com o que sobrou do Toca CD, do três em um e da vitrola. Engendrou um monstrengo. Estava agora o aparelho apto a execuções em três velocidades: 33, 45 e 78. Satisfação no rosto do Apolônio. Competência nas mãos do Joca. Deixou para testar no dia seguinte, depois de resgatar do esquecimento uns pesados discos de cera de carnaúba.
– Decepção, Joca. Nada funciona – era o que dizia seu Apolônio no telefone ao Joca, no dia seguinte. – Vem voando consertar.
E ele foi lá na bucha. Desistira dos médicos e dos diagnósticos errados.
Trazia ecos do passado que fizeram o Apolônio viajar no tempo. Peças de um velho gramofone. Foram horas de labuta. Seu Apolônio inquieto. Joca mexendo no aparelho e ele lustrando os pesados discos de carnaúba.
Fim do trabalho. Era impossível não funcionar. Pôs o disco, a agulha delicadamente sobre ele, acionou a manivela e sentaram-se em cadeiras de palha. Um som de gato arranhando vidro brotou da geringonça. Contentamento dos dois. A voz roufenha e distante de um cantor, quase ininteligível e soterrada por mil ruídos, surgiu do passado.
Apolônio olhou emocionado para o Joca, ali sentado. Ele sorriu, desculpando-se. Havia terminado o serviço e também queria ouvir o prodígio.
– Isso que é som! – suspirou Apolônio.

jjLeandro

« Voltar