Os Sapatos
Minha irmã tinha por volta de uns dezoito anos de idade quando abriu seu armário e viu que sua coleção de sapatos estava incompleta. Alguma coisa faltava, mas ela não sabia o quê;
"Pai, eu estou precisando de um sapato novo", ela disse manhosamente.
"Mas como! O seu armário está cheio de sapatos! Pra que mais um", ele disse.
"Eu sei que tenho muitos sapatos, mas é que eu quero comprar um novo que eu vi outro dia. É uma gracinha!"
"Então compre, ué! O que eu tenho de ver com isso?"
"Ora, pai, eu não tenho dinheiro e preciso que você me dê do seu..."
Com a cara determinada ele respondeu: "eu não vou te dar dinheiro para comprar outro sapato, seno que você tem um monte deles no seu guarda-roupas".
Sem dúvida alguma nosso pai não conseguia alcançar o ponto de vista de minha irmã, tampouco ela conseguia alcançar o ponto de vista dele. Quem estava com a razão é discutível, mas o fato é que bastaram alguns minutos de conversa para que um saísse para um lado e o outro saísse para o outro.
Meu pai ficou tranqüilo e foi cuidar da vida. Mas minha irmã, a partir daquele momento, fez daquele sapato sua meta de vida. Ela pensou com seus botões e descobriu que o que lhe atravancava a vitória era a ausência do dinheiro.
Passado alguns dias ela então comentou com todos nós: "eu vou começar a trabalhar". Ela havia encontrado a solução para o seu problema: sua liberdade de comprar sapatos à vontade viria do salário.
Até hoje vejo minha irmã trabalhando como louca, dia e noite. Ela diz que gosta, que se sente feliz. Ela sempre lutou por sua liberdade. Hoje mora sozinha e é capaz de se sustentar sem ajuda de ninguém.
Porém, uma dúvida me persegue: Não terá ela se liberdado do nosso pai, mais virado escrava dos sapatos!?
Só mesmo dando uma olhadinha no seu guarda-roupa. Quem sabe ele não me dê uma resposta.
Marcelo Ferrari
Do livro: Manga com Leite, Ed. autor, 1998, SP