AFIADO DEMAIS

Nunca acertava o momento de largar o apontador.

Apontava duas voltas e parava, via que a ponta do lápis estava boa, mas ainda não era ideal e continuava. Mais duas voltas, as tiras da madeira se amontoando na classe e pensava que poderia avançar mais um pouquinho. No meio da última volta, quando suspirava de satisfação, o grafite quebrava.

Não absorvia a lição, e recomeçava. O capricho me impelia: arredondar a cabeça, afiar a pequena lança de meus deveres escolares. Não encontrava a hora de cessar, confiava que acertaria na próxima tentativa e fracassava. A ponta perfeita terminava presa no apontador de metal. O lápis ia diminuindo. E recomeçava até admitir que minha letra não deslizaria como desejava, ficaria borrada e que somente o uso abrandaria as lascas.

Levamos o preciosismo ao casamento. Não definimos o instante de interromper a caça pela ponta perfeita. Exigimos muito de quem amamos. Vejo sinceramente que exigimos aquilo que não exigimos nem da gente. As brigas tornam-se absurdas, sem controle. O humor é compreendido como deboche. A consolação é recebida como crítica. A solidariedade é distorcida como confissão dos erros. Uma pausa em silêncio para remontar as idéias e já estamos sendo inquiridos pela estranheza. Repetir mais de uma vez um nome feminino e inauguramos uma adversária. Não ouse dormir cedo ou aparecer tarde, que é certo de que não valoriza o convívio e aproveita a vida com os amigos.

Pode deixar uma manhã livre para ajudar sua mulher numa tarefa profissional, que ela não lembrará na próxima semana. Pode freqüentar mais vezes o mercado, apesar de detestar, e ela comentará que não colabora em casa. Se você não cozinha, terá que engolir toda noite a sentença de que não planeja as refeições ou contar com um crédito infindável no banco para chamar comida. Pode passar a tarde livre com os filhos, ou criar uma tarde para os filhos, que ela comentará que vocês vivem se divertindo. Pode tentar trabalhar loucamente para produzir algo realmente bom, e ela não entenderá a importância daquilo. Talvez diga que permanece trancado no escritório ou viajando. Nada será suficiente. Seu cansaço será identificado como falta de ânimo; sua distração será descuido. Discutirá por qualquer coisa pela birra de restabelecer a justiça. Devolverá que não é bem assim, mas não terá graça nenhuma. Reiterar o que foi feito espontaneamente é o mesmo que jogar na cara. Defender suas ações soará como um pedido de recompensa e perderá a legitimidade.

E não confie que ela está errada e só você é que sofre. Faz o mesmo com ela de outros modos.

O intrigante – que o confunde ainda mais –é que ela realmente o ama, só que jura que pode dar mais do que está oferecendo e cobra aquilo que não existe.

No casamento, demora-se a aceitar que a ponta é para escrever, não para ferir ou furar o papel.

Fabrício Carpinejar

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