A morte do gramafone
Bom vizinho, aquele! Inglês pacato e sisudo, mister Waterproof morava em Santa Thereza, ao lado do meu tugúrio, á beira da formosa rampa que vai ter aos cafundórios de Catumbi. Todas as tardes era meu companheiro de viagem, no mesmo jazz-bonde, que nos conduzia aos respectivos penates. Pouco conversador, o inglês limitava-se á saudação vulgar e a comentários sobre a beleza dos panoramas, sobre o calor, o céu lindo e outras chapas costumeiras, Chegado à casa, metia-se num dolman branco, ia para o terraço, armado com um cachimbo, um livro e os ingredientes de uni whisky and soda. Era invariável nesse programa até cair a noite.
Um dia apareceu no bonde com a fisionomia mais enrugada do que um maracujá de gaveta. Queixou-se amargamente da vida insuportável na casa, que era uma pensão de estrangeiros, ordeira e silenciosa. E desabafou, no seu falar macarrônico:
Estou desesperado! Non ter sossego mais. Lá baixo, no Catumbi, numa casa nova apareceu um gramofone!
Fiquei arrepiado. O caso era grave.
O inglês continuou:
Quando eu chega casa, o homem bota o gramofone de trombeta...
De trombeta?
Sim, senhor. É desses gramofones antigos de canude busina. Pois o homem bota o aparelhe no janela e começa tocar o disque. Porque o homem só tem um disque. De um lado toca Ramona...
Fiquei mais arrepiado! O caso era mais grave. O inglês prosseguiu:
Toca Ramona de orquestra, do outro lado toca também Ramona cantada, depois volta pra Ramona de orchestre, depois...
Mas isso deve ser um suplicio! Exclamei eu, que felizmente tenho ouvido mouco.
Terrível! Para variar, o homem muda compasso do gramofone assim Ramona Ramona Ramona depois muda pra mais de vagar Ramo-ô-na... Ra... môna...
Que suplicio! É caso de policia!
Já procurei comissário delegacia, ele diz tem nada com esses coisas. E o homem todos dias, quando chego casa, lá está no janela com o Ramona de trombeta.
Prometi fazer uma reclamação pelos jornais e muito tempo passei sem pôr a vista em cima do inglês. Quando o encontrei de novo, vinha radiante; apertou-me a destra, fazendo estalar os dedos num possante shake hands. Supus que a reclamação publicada tinha produzido eficaz resultado e aventurei a pergunta:
Então? Está satisfeito?
Satisfeitíssimo!
O homem do gramofone de manivela parou com a cantiga?
Non. Gramofone foi que parou.
Desarranjou-se?
Parece.
Como, parece?
Matei-o!
E como eu o fitasse, pálido de espanto, sorriu, com ares vitoriosos.
Que me diz ! Matou o homem?
Non. Matei o gramofone. Já non podia mais! Mandei recado lá baixo ao homem e ele: tome Ramona! Depois de um mês de desespero, comprei espingarda caça, fui no terraço e esperei. O homem pôs gramofone no janela e foi buscar o disque de Ramona. Fiz pontaria de chumbo grosso, atirei no instrumento de tortura e o gramofone estrebuchou, cambaleou e foi cair no chão. O homem correu para ele, mas era tarde; o homem levantou o aparelho e eu vi o gramofone sem trombeta, sem caixa, com a corda partida. Estava morto.
E depois de uma pausa:
Agora vou me mudar para o Silvestre. O homem pode também fazer de mim gramofone...
E saltou lépido, do bonde, a assoviar a Ramona.
Raul Pederneiras
N.E.: Com os devidos cuidados para não alterar o original e estilo do autor, a crônica de Raul Pederneiras, publicada na Revista da Semana, número 8 de 1 de fevereiro de 1930, passou por atualização ortográfica.