DUAS RODAS
Saio por aí pedalando: a bicicleta é meu veículo ideal. Duas rodas que me transportam pelo verão e riscam no solo, sem controle, uma sucessão de símbolos do infinito. Assim passo, vento no rosto, e o corpo a comandar a máquina, finalmente.
Andar de bicicleta é um instante, sempre um instante. Numa curva ou numa reta, descobre-se no tempo aquele dia no qual foi possível manter o equilíbrio pela primeira vez. Aos poucos, deixa-se de prestar atenção nas rodas, no caminho e nos mecanismos – e surge a paisagem, acompanhada de outros ciclistas, como lembra uma balada de Vinicius de Moraes na qual passam
Enxames de namoradas
Ao sol de Copacabana
Centauresas transpiradas
Que o leque do mar abana!
Há muito tempo busco o ar livre dos fins de semana. Em Londres, as estações mais quentes vêm acompanhadas de roteiros bem planejados que ensinam a atravessar bosques, beiras de rios, pequenas cidades e vilarejos. Em solidariedade, já me juntei a mais de mil ciclistas e chegamos a Brighton, a Oxford, a Cambridge, com paradas em pubs e interrupções humanistas para socorrer uma bicicleta com pneu furado ou reparar uma correia arrebentada. Em Moscou, cidade com trânsito agressivo e sem cultura ciclística, apenas sigo às margens do rio até o parque da Universidade, e ali faço as curvas que me levam ao parque Gorky, de onde, apreensivo, volto para casa.
No Rio de Janeiro é mais simples: a palavra orla, por si, estimula o passeio à bicicleta, como um antigo poema concreto que ainda rola. Ovo no velho. Velocidade. Agora se pode pedalar pela cidade com a nova oferta pública de bicicletas, excelente idéia inspirada pelo sistema Vélib, que reinaugurou o ciclismo pelas ruas de Paris. É uma opção a mais, a ser exercida nos dias de calor.
Se chover muito, porém, então fico em casa e uso as férias para ler sobre bicicletas, outra forma de conhecê-las e de comandá-las. Coincidentemente, os livros que guio são todos franceses, embora comentem a paixão generalizada de manter o equilíbrio sobre duas rodas. Marc Augé acaba de publicar Éloge de la Bicyclette (Payot & Rivages, 88 p., 11 euros), pequeno manual de prosa poética no qual descobre o óbvio: não se pode falar de bicicleta sem falar de si mesmo e do corpo. A bicicleta impõe “uma nova autonomia” a quem apenas caminha, que se prolonga, como a natação, na memória mais íntima do sujeito – pois, uma vez ciclista, sempre ciclista.
Como se estivesse numa descida suave, gosto muito do trecho no qual Marc Augé relaciona a bicicleta à escrita automática dos surrealistas, ao mesmo tempo em que, sem esbarrar na contradição, também reconhece que o passeio pode ser uma “meditação mais construída, mais elaborada e sistemática” através de lugares selecionados previamente com erudição. Ele sabe, como poucos, que o sonho do ciclista é se sentir na terra como o peixe dentro d´água.
Menos diletante, menos utópico – porém, muito intenso e muito informado – é o livro de Éric Fottorino, de título quase igual ao outro: Petit Éloge de la Bicyclette (Gallimard, 135 p., 2 euros). O autor em apreço vem a ser diretor do diário Le Monde, e equilibra ciclismo e jornalismo. Ele escreve que a bicicleta é “um jogo de criança que dura muito tempo” e, algo melancólico, confessa que a competição, para ele, relaciona-se com a necessidade de “retardar o instante do crepúsculo”. No centro de sua fascinação com o ciclismo está o Tour de France, a mítica disputa criada em 1903. As competições exibem proporções de um épico, com passagens pela vida, pela paixão e pela morte: a ciclovia transformada em via crucis. Nesse cenário tonitroante, assume o primeiro plano o belga Eddy Merckx, que ganhou 525 corridas as mais variadas ao longo de sua carreira. Tão fominha por vitórias que ganhou o apelido de Canibal. O ciclismo, esporte tão exigente quanto o boxe, atraiu escritores como Dino Buzzati, afinal convencido de que a disputa entre dois corredores tinha a mesma força da luta entre Aquiles e Heitor.
Exausto após a leitura sobre tantos heróis que ultrapassaram os Pirineus e as altitudes alpinas ao longo de mais de 3 mil quilômetros – entre quedas, traições e suspeitas de dopagem –, volto a passear de bicicleta com os desenhos de Sempé em Simple Question d´Équilibre (1977). Ali está um mundo quase sempre solitário, a menos que a pessoa amada esteja na garupa ou na barra dianteira, próxima ao guidom. Um mundo sem tombos e sem palavras, no qual a pessoa apenas se desloca com prazer no espaço e no tempo. É assim mesmo que me sinto, como se fosse um outro: quando me vêem ou me apontam, apenas sinalizo que sigo em frente, um cara estável até prova em contrário.
Felipe Fortuna