Janelas e Colchas
Quando a bainha da saia da noite arrastava pelas calçadas, acendendo os postes da rua e tocando os passarinhos para casa, Vitalina me chamava para tecermos a nossa colcha de sonhos na janela. Arrastávamos então duas cadeiras e no chão deixávamos os cestos, onde guardávamos o nosso material de trabalho: dois pares de raios de lua como agulhas, e risos, dores, desejos, tristezas, lembranças, raivas, fracassos, decepções, medos, amores, desamores, ilusões, realidades, desesperos, descrenças, entusiasmos, alegria e fé, enrolados em diversos novelos.
Sentávamos bem próximas do parapeito da janela e enquanto a saia da noite farfalhava faróis a buzinar aflitos para chegar em casa após um dia inteiro de trabalho, inalávamos o perfume da noite e começávamos a tecer.
A princípio, por ocasião das primeiras laçadas, atrapalhei-me com o manejo das agulhas e ainda não tinha muitos novelos ao meu dispor. Os raios de lua, embora eternos, de tão flexíveis eram difíceis de manejar. Diferentemente de Vitalina, que tinha uma variedade de novelos, os meus eram uns poucos metros de fio: o dos amores, um pouco menos, e o da fé, um pouco mais roliço, apresentando pequenos nós que embaralhavam o tricotar.
Vitalina dizia que a prática e mais novelos viriam com o tempo. E que os nós no fio da fé eram para ser assim mesmo, "porque senão não é fé".
Também custei a me acostumar com a falta de visibilidade do trabalho. A colcha parecia não passar daquela primeira tripa de laçadas que inicia o crochê. Vitalina ria da minha impaciência, dizendo que no início as colchas da janela são difíceis de se ver. E torcendo na agulha um fio, arrematava: "a veneziana do tempo é que dá forma às colchas".
Marcia Frazão
Do livro: A Casa da Bruxa, Ed. Planeta do Brasil, 2004, SP
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