Sapatos vermelhos

Bem que eu sabia que aquela história acabaria mal. Não deu outra.
Ah! Meu sapatinho tão lindo, bico fino, verniz novinho...
Não sou egoísta, juro, porém, desagrada-me emprestar sapatos.
Julgo-os mais pessoais do que as próprias calcinhas.
E também gosto de sapatos impecáveis, que não indiciem uso frequente.
No entanto, naquele fim de tarde, Beatriz – olhos pidões – precisava de uns sapatos vermelhos...
Sem eles não se sentiria segura para bem impressionar um amigo que conheceria naquela noite.
– Como? Chama de amigo alguém que nem conhece?
– Conheço-o pela Internet, ainda não nos vimos pessoalmente.
Fiz um bico de desolação, que desmanchei imediatamente antes que ela o notasse.
– Que roupa usará? – perguntei ainda na esperança de fazê-la desistir do vermelho.
– Ora, vou com a saia preta, blusa vermelha. Bolsa, tenho boa.
– Será que meu sapato servirá? Olhe, creio mesmo que lhe fique pequeno...
– Dou um jeito, amiga! Se ficar apertado, não me fará mal, vou ficar sentada.
Ai, meu Santo Antoninho! Não fará mal para ela, mas para o sapato... e eu que ainda nem o usara!
Antes que me esqueça, detesto que me chamem de amiga, nada me soa mais falso que o termo, em situações assim... de interesse unilateral.

Com dor no coração, fui ao armário e desloquei a caixa que continha o “xodó rubi”. Tratava -o assim porque só eu sabia o quanto me custara...valor que não revelaria a ninguém, ou me teriam como maluca. Sem contar o preço das passagens para Milão e as demais despesas da viagem (risinho nervoso).
Cuidadosamente, levantei a tampa e com a ponta dos dedos elevei o sapato até quase o nariz da moça.
Ele fez cara de espanto. Disse-me que nunca vira um par tão lindo quanto aquele.
Nem eu! – respondi com amargura.
Se por um lado achei bom ajudá-la, por outro, uma ruga de preocupação desenhou-se entre minhas sobrancelhas quando a vi sobre os saltos.
– Devolvo-lhe ainda hoje, na volta – disse ela, admirando-os. Deixo os meus aqui e depois passo para a troca, a menos que eu volte muito tarde... Nunca se sabe.
– Não, não, pode passar seja lá a hora que for. Estarei acordada, apanhei vários filmes. Quero vê-los todos, hoje.
– Veja lá, heim... detesto incomodar – disse, ao sair, como se já não tivesse incomodado o suficiente-.
E lá se foi e eu fiquei ouvindo: toque... terreque... toque... terreque...
A cada “terreque” sabia que os sapatos sofriam a inabilidade da moça para com a elegância; percebia que penavam com sua pouca desenvoltura em andar sobre saltos tão altos.
Entrei em casa para não me ocupar com o barulho que mesmo abafado persistia.
Tentei concentrar-me no filme.
O telefone tocou. Era Cecilinha, que com voz cantante, animada, convidava-me para a comemoração de seus quarenta anos. Uau! Programão!
Cecilinha era aquela com um quê de gente chique. Simpática, agradável, divertida. Delícia de presença e companhia. Decerto a festa seria um sucesso.
– Claro que irei, não a perderia por nada.
Enquanto lhe dava meu endereço para o tão bem-vindo convite, eufórica, já ia pensando no que usar, no que calçar... no que calçar... Ai!... O sapato. Todos os santos! Todos os deuses...
Desligado o telefone, do filme, não li mais frase nenhuma. Meus pensamentos apenas tinham uma direção.Olhei cinqüenta vezes para o relógio, que em meu pulso parecia parado.
Fiquei apavorada. Beatriz demorava. Quase meia-noite e quanto mais ficasse fora, mais riscos correriam meus sapatinhos.
Pensei, trêmula: "a moça deve pesar uns noventa quilos... Não, ela disse que emagreceu dois. Será que o sapato aguentará? É de boa qualidade, mas não sei se fora projetado para exagerados esforços, afinal, tão delicado..."
E, assim, com tais dados, preocupada, comecei a andar pela casa, abrindo e fechando portas e janelas. Foi aí que quase pulei de aflição:
Terreque... (Silêncio...). Terreque... (Silêncio...). Faltava o toque. Meu coração saltou.
Beatriz bateu de leve. Corri para abrir a porta. Minha percepção e intuição não me enganaram.
Lá estava ela. Calçava apenas um pé do sapato, que tinha o bico todo raladinho. O outro, sem o salto, trazia na mão esquerda...

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Quem, eu? Ir à festa da Cecilinha?
Nem pensar, Deus me livre!...

Maria da Graça Almeida

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