Água da moringa
Se um peixe fosse jogado dentro dela, certamente se tornaria imortal
A um canto da sala da casa de minha infância, bem junto à porta que se abria em duas folhas, ficava uma pequena mesa. Sobre ela, uma toalha de renda e uma moringa de barro com um copo servindo de tampa, sempre cheia de água fresquinha. Era um convite para quem chegasse ou saísse, naquelas tardes abafadas e quentes de Mato Grosso. Um presente de hospitalidade: água para o visitante, soberana das maravilhas. Maior das riquezas. Mais preciosa do que as pérolas, pois de que valeriam para o beduíno sedento? Sorvia-se a cada gole um pouco de pureza e bênção. Que sabor inesquecível tinha aquela água.
Havia todo um processo: a moringa fora lavada, depois foi colocada água dentro dela com um punhado de açúcar e folhas de laranjeira até encharcar o barro, que roubaria o calor do líquido, deixando-o sempre frio. A água ficava doce, doce. Parecia ter vindo de um lago onde a lua leitosa se banhava inteira. Dentro da moringa morava uma aurora branca. Palavras úmidas boiavam em flutuações de desejos e sentimentos secretos. Se um peixe fosse jogado dentro dela, certamente ressuscitaria e se tornaria imortal, nadando como faísca entre as paredes de limo. Tomar daquela água era momento de pausa e carícia. Era tirar toda amargura do coração.
Quando quero lembrar de algo que me encha de sabedoria, sinto o gosto daquela água da moringa. Meu sorriso fica claro, os meus gestos fluídos e as notas de um cântico de paz pingam em gotas dos meus lábios.
Vi um cântaro parecido sobre os ombros da mulher samaritana, numa imagem cor de sépia, pendurada sobre o sofá de couro, numa outra casa portuguesa, a dos meus bisavós, Maria e Antônio, na rua Treze de Maio. Quando eles partiram, eu tinha uns sete anos. As recordações ficaram vivas em minha memória. O quadro mostrava o poço no deserto e um encontro essencial: a mulher samaritana e Jesus. Jesus se revela como o Senhor da Água Viva dizendo: “ - Aquele que beber da água que lhe darei não terá mais sede. A água que eu lhe darei se tornará nele fonte de água a jorrar em vida eterna.”
Meu bisavô amava essa passagem e contava com lágrimas nos olhos:
- A samaritana teve o privilégio de oferecer água ao Mestre, água da bilha.
Água é mesmo energia e força nova. Desoladora a situação que estamos vivendo com problemas de abastecimento de água, reservatórios em níveis baixos, seca no Nordeste, enchentes no resto do território, crise no sistema Cantareira. É preciso urgente mudar nossa relação com a água. Pontos de água são lugares sagrados. Alguém disse que não existe amor em São Paulo. É da água que nascerá o amor. Há um salmo que diz: “Junto aos rios da Babilônia, nos assentamos e choramos”. A água é objeto de súplica. Clamemos a Deus para que ele escute nosso grito e envie os seus aguaceiros. Que venham chuvas de primavera. Que o orvalho que faça romper flores improváveis no asfalto.
Só aquela água da moringa saciava a terra seca da minha alma. Eu me orientava para a porta com o faro de uma corça. Dentro dela brilhavam luzes e cacos de estrelas.
Raquel Naveira