“Depois do ocorrido, o que me resta é somente o ânimo de contar essa curta e nervosa história, que nem eu mesmo sei se acredito”.
O Narrador
O vento uivava retorcendo as arvores – enquanto os trovões reboavam estremecendo a terra sob meus pés. Com as mãos nos bolsos e a gola da jaquetaencobrindo as orelhas; caminhei açoitado pelo vendaval. Consultei o relógio, o claro da lua refletia nas nuvens, desciam até mim e estendia-se pela encosta prateando o mar revolto.
Em minha sacola, um mapa e gráficos que amanhecera comigo dias antes. Não me perguntem como isso se deu. Na dita noite desse ocorrido, vaguei por sonhos extraordinários, quando num dado momento – isso me lembro bem – deparei-me com um cavaleiro de singular vestidura, que diga-se lá, magnífica: cavalo robusto e afoito; trazia em seu trotear uma áurea majestosa, cabeça erguida e inquieta. Os cascos aparados simetricamente; protegidos pelas ferraduras que reluziam na noite – um belíssimo zaino.
O cavaleiro trajava uma indumentária que remontava a idade média; a túnica de aço protegia o corpo até aos joelhos, elmo na cabeça, e, sustentava no braço esquerdo um grande escudo que trazia em sua face um brasão, que somente mais tarde, pesquisando lendas antigas descobri pertencer ao Rei Arthur.
– Não disse única palavra, apontou-me a espada e através dos gestos deu-me a entender que lhe faltava a bainha. A bainha mágica da Excalibur. Estendeu-me um surrado pergaminho, o cavalo assoprou forte e empinou, atirando-me sentado na terra orvalhada. Sumiu-se como apareceu – num raio ofuscante e surdo, em fração de segundos.
Apalpei na sacola a pequena pá, impulsionei as pernas e invadi o sagrado cemitério de Avalon, orientado pelo prévio estudo do surrado pergaminho. Se eu estiver certo; a bainha da Excalibur (como diz algumas histórias); não foi jogada no lago sagrado por Morgana, a irmã mais velha do Rei Arthur, apaixonada por Lancelot seu sobrinho, que a rejeitara por ser muito parecida com sua mãe, Viviane (a senhora do lago). Minha missão; repito, – se eu estiver certo –, é desenterrar a bainha mágica da espada e joga-la nas águas do mar, onde Viviane velará para que a bainha mágica não caia em mãos erradas. Pois, sendo o símbolo da justiça e da união, uma vez conduzida por um coração inescrupuloso e vingativo, a Excalibur conduzirá seu poder de acordo com o coração que a possuir; podendo vir a destruir todo o restante do universo, assim como ocorreu com Atlântida e a própria Avalon. Minha missão então, aqui nesse passado longínquo é salvar o meu futuro, devolvendo a bainha as águas sagradas que circunda toda a ilha de Avalon; onde repousa ansiosa, Viviane, a Deusa do lago.
Cavei sofregamente até ouvir o tinido da pá chocar-se em algo metálico, afoito, puxei com força as dobradiças niqueladas que rangeram incomodando a noite. A seguir irrompeu um tropel de vários cavalos calçando ferraduras; da caixa surgiu um clarão verde ofuscando a lua e meus olhos, minha sombra estendeu-se para longe de mim. Circundaram-me doze cavaleiros e apontavam ameaçando-me com pontas de lança, abriu-se o circo e o cavaleiro que outrora eu havia encontrado, ou, que havia me encontrado; apanhou de mim a bainha num gesto decidido, e, se os olhos não me faltaram com a razão no momento, e, diante de mim, transformou-se na maldita Morgana:
– Avalon enfim será minha! Bradou vibrando a bainha na mão esquerda e a espada com a mão direita, prontas para se unirem, assim se realizaria o pérfido desejo de Morgana o desejo de vingança por ter sido preterida no reino de Avalon. Reluziram-se grandemente, espada e bainha, acasalando-se. Quando repentinamente; Merlin, pondo-se entre Morgana e eu, num gesto próprio dos grandes mágicos, arrebatou-as das mãos de Morgana. A espada sibilou rumo ao céu num rastro de estrelas, a bainha desceu mansamente ao mar nos braços de Viviane que me sorriu submergindo nas águas escuras.
O Guerreiro Ollintay
O chefe Ollantay, valente guerreiro andino, herói do povo Tauantinsuyo, apaixonou-se perdidamente pela princesa Coyllur, herdeira do império Inca; filha do Rei Tupac Yupanqui. Coyllur, uma jovem doce e sonhadora que ambicionava romper com esse distanciamento reinante no Império. Muitas vezes se indispôs contra o próprio pai na tentativa de demovê-lo de sua política de governo. Pois ela via nessa forma opressiva e fechada uma grande ameaça para o futuro do Império Inca. Para ela a forma de evolução era a abertura para o conhecimento, o estreitamento entre o povo e o reino. Era para ela essa aproximação a forma ideal para que a tão rica cultura Inca não se debruçasse em decadência em um futuro não muito longínquo.
Contrário à doutrina que era submetido o reino, ela tornou-se uma rebelde. Coyllur conheceu o guerreiro andino em uma festa popular. Como era proibida de sair (mesmo na companhia do rei), arquitetou sua fuga disfarçada de arrumadeira do castelo. Perambulou pelas ruas íngremes e escorregadias; calçadas com paralelepípedos, quando deparou-se com o guerreiro que discursava para os rebeldes trepado em uma mesa rústica de madeira que servia para os camponeses da região transarem suas mercadorias. Ficou encantada com a eloqüência do guerreiro, e ouviu embevecida as suas palavras exultarem a liberdade e a igualdade entre os povos. Por breve momento os seus olhares se cruzaram, e ela teve a certeza de que se deparara-se com um grande homem. Seu coraçãozinho assentiu alegre, como o mais ledo pássaro que gorjeia.
Por sua vez Ollantay sentiu que seu sentimento era correspondido, e diante da presença de sua amada, pasmou-se encantado, pois nunca antes a tivera tão ao seu alcance (apesar de estarem consideravelmente afastados). Sua eloqüência empacou como uma burra sestrosa. Abandonando o discurso, pulou do tablado, mas já era tarde demais, sua amada misturara-se no meio da multidão. Voltou ao discurso e seu tom de voz fez-se mais fervoroso, sua tez corara consideravelmente e sua voz adquirira uma rouquidão emotiva. Sua vibração atingiu um estágio, que não se contendo mais, a ovação irrompeu estrepitosa pondo um merejamento nos olhos do bravo Ollantay.
Apesar de tudo, sabiam ambos que esse romance era proibido pela lei suprema Inca; Dado que nunca uma donzela de sangue real poderia se casar com um homem do povo. Seria um enlace extremamente abismal às vistas da cultura incaica, pois, a linhagem real comportava-se acima do povo, igualava-se aos deuses. Dentro desse pensamento, o império Inca sempre foi um mundo interno, fechado, e o povo somente aspirava participar de sua história como meros súditos ou cúmplices.
Tupac Yupanqui tomando conhecimento do sentimento de sua filha, providenciou para que fosse ela encerrada em um calabouço. Acreditando que assim evitaria que a paixão usurpasse a razão de sua herdeira e servisse como arma de fuga em busca de seu amado. Ollantay ao saber do ocorrido, abandonou o povoado Tauantinsuyo disposto a tudo para libertar seu grande amor da clausura. Armou-se de sua espada mágica que possuía poderes totêmicos. A elasticidade da serpente; a astúcia do lobo; a visão do condor e a dureza da rocha guiavam o guerreiro em suas vitoriosas batalhas.
Ollantay a custo de muita luta banhou sua espada de sangue; invadir a fortaleza Inca e resgatou sua amada fugindo em seguida para a floresta. Durante a desabalada fuga, em seu majestoso alazão que tinha a testa estrelada e as patas brancas, foi abatido por flechas venenosas no retesar do galope. Preocupado com sua amada, que rolara para longe na queda. Não viu porem que sua espada se desprendera da bainha no solavanco. Em carreira tamanha, rasgando mato no peito, Ollantay nem sentia o peso de sua amada sobre os ombros.
Na fuga somente ouvia-se o farfalhar dos ramos zoando-lhe aos ouvidos, e o Tunk! Tunk! Tunk! Do calcanhar socando o solo úmido da mata cerrada como um pequeno bate-estacas a martelar frenético. De súbito a visão prateada cercou-lhe a passagem. As águas reverberavam os raios de sol, os reflexos cegavam-lhe as vistas. Tomou pé de si e deslizou sua amada para o chão. Subitamente prorrompeu o tropel da cavalaria relinchando e estalando galhos. Viu-se acuado. Num gesto instintivo, próprio dos destemidos guerreiros, buscou sem sucesso a espada junto à cintura. Foi do espanto ao desespero ao ver-se abandonado pela sua fiel guardiã; sem esperanças deteve os olhos na silhueta feminina ajoelhada adiante de si; tinha o olhar perdidos nas águas. Num instante o rio ficou repleto de folhas redondas, com bordas viradas para cima, eram Vitórias-régias que atingiam mais de três metros de diâmetro.
Num salto arrojado agarrou sua amada pela cintura e jogaram-se nas costas da vitória-régia Rainha que placidamente deslizou rumo a outra margem do rio. Sentiu um alivio momentâneo, e pela primeira vez durante estafante fuga buscou os olhos de sua amada Coyllur. Tamanho foi seu assombro ao deparar-se com o olhar macilento incrustados no rosto cadavérico do velho feiticeiro do Império Inca sentado ao seu lado. Desatinado voltou-se para a margem que ficara para trás, às suas costas, ainda a tempo de contemplar Coyllur envolta em uma poça de sangue estirada na margem. A sua fiel espada reluzia brandida pelo carrasco do reino. Ela havia degolado um sonho de amor e um desejo de liberdade. O Império Inca morreu sem parir a sua fantástica cultura que até hoje permanece um mistério. O sangue real turvou a areia branca da praia e agitou a calmaria das águas. Ollantay Tentou gritar, mas a sua voz negou-se-lhe, e uma espécie de deslumbramento turvou-lhe as vistas.
José Mattos