TIO MANUEL E EU

Na forma, somos diferentes.

Ele evitava os adjetivos, sempre foi substantivo, minimalista, poeta da simplicidade, cortando todo o supérfluo, irritado com as hipérboles e o exagero. Um verso seco, contundente, de frases precisas, que transcendem o cotidiano, envolvendo-o num clima de eternidade.

Eu amo os adjetivos. Amo-os, não como qualidade do nome, mas como notas para a composição da musicalidade barroca, as vezes sinfônica, que espero tirar dos meus versos. Amo confundir o banal com o próprio som do verbo, matizá-lo dos tons mais variados, tirar o espanto da gaveta.

No conteúdo, somos parecidos: a metafísica do cotidiano, o desnudar-se algo envergonhado, uma religiosidade que perpassa a vida sem tocá-la fundo, mas sempre presente, como veladura, a angústia da finitude (ele se dizia preparado para a Indesejada das gentes, mas amava demais viver, apesar das dores).

Na juventude, embora sempre admirando o grande poeta que é, sentia-me rebelde, distante, o peso de ser sua única sobrinha-neta. Agora, relendo o “Itinerário de Pasárgada“, revendo o maravilhoso filme do Joaquim Pedro, sinto aquela “ternura funda”, uma saudade da convivência parca e trivial que tivemos, eu menina.

As óperas surrealistas de seu pai, meu bisavô, lembram as que me divertiam de meu pai, seu sobrinho, tão parecidas que dói e comove. Que figura linda meu bisavô que não conheci! Gostaria, egoisticamente, que o Itinerário tivesse mil páginas sobre os personagens da nossa família. E a belíssima e simples revelação da arquitetura de sua poesia, as dúvidas sobre a colocação de uma palavra (os poetas só publicam para parar de consertar os versos, que verdade absoluta) .

Meu tio Manuel. Não o Bandeira da Academia, o poeta maior, perdoai-o, mas aquele homem solitário, de sorriso dentuço, fazendo café, lavando a louça, ao fundo o contraponto : “vou-me embora pra Pasárgada”. Pasárgada e colher. Pasárgada e café, Pasárgada e Riachuelo, esta é a chave.

Com ela, abrem-se nossas portas para o Paraíso. Estamos juntos lá, eternamente, como a casa de nossos avós.

Maria Helena Bandeira

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