A MÚSICA COMO TEMA CATALISADOR DE OUTROS DEBATES
“Debussy” e “Epílogo” foram os dois poemas escolhidos do livro Carnaval, de Manuel Bandeira, publicado em 1919, portanto antes do primeiro encontro dos dois, em 1921, no Rio, na casa do poeta Ronald de Carvalho. Só em maio de 1922 a troca de cartas começaria (após a Semana de Arte Moderna), por iniciativa de Bandeira, quando este oferecera a Mário um exemplar de Carnaval, livro que Mário já conhecia através de Guilherme de Almeida em uma “viagem nunca esquecida tarde de domingo”, numa viagem de táxi.
“Debussy” e “Epílogo” seriam apenas dois poemas, entre diversos outros, a tratarem, direta ou indiretamente, da música na poesia. Só na obra Carnaval, d os 33 poemas, nove expressamente fazem referência à música, sendo que em sete deles ela aparece já nos títulos: A Canção das Lágrimas de Pierrot, Debussy, Rondó de Colombina (feito antes mesmo do primeiro livro, em 1913), O Descante de Arlequim, Baladilha Arcaica, Madrigal. Em A Morte de Pã (em que ele compara Jesus à divindade pagã pelágica da Arcádia, utilizando inclusive o episódio narrado por Tamo, enquanto este viajava pelo Egeu, na época de Tiberius), a música aparece indiretamente, está ligada à figura do fauno, pois não se concebe a imagem de Pã sem sua flauta. E, em Epílogo , a música aparece no corpo do poema, através da comparação do Carnaval poético manuelino ao Carnaval musical de Schumann. Embora, portanto, a importância da música já esteja bastante visível neste segundo livro, esse dado seria apenas mera constatação, registo sem outras conotações. Somente à luz da correspondência epistolar dos dois poetas podemos descobrir e aprofundar-nos em outros debates sociais que subjazem nestes dois poemas, valorando a importância da música como tema capaz de mobilizar outras espécies de polêmicas bem mais amplas.
Vejamos primeiro o poema “Debussy”:
Debussy
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
— Psiu... —
Para cá, para lá...
Para cá e...
— O novelozinho caiu.
O título refere-se ao compositor Claude Debussy, músico francês que viveu durante o período de 1862 a 1918, portanto ainda contemporâneo de Bandeira e de Mário. Debussy teve aulas de piano com Madame Mauté de Fleurville, que fora aluna de Chopin e era sogra do poeta Paul Verlaine. Ela despertou em Debussy um forte sentimento de independência e liberdade artística, prevendo seu futuro promissor como músico, o que o incentivou a criar sua própria linguagem: buscando inspiração nos poetas e pintores de seu tempo, “a música dele possui as cores e luzes do impressionismo, descrevendo o mundo em harmonias inovadoras para a sua época”, no dizer do Novo Dicionário Grove de Instrumentos Musicais.
No texto do poema, a primeira observação que nos chama a atenção é que Bandeira não fala diretamente do compositor, mas sim da sensação que a música dele lhe desperta, na imagem poética que o som musical lhe sugere: um menino (e aqui está outro tema muito recorrente nas cartas e na poesia dos dois poetas: a infância) com um novelo que em ritmo harmonioso e compassado oscila no ar, delicadamente, até que o embalo desta Berceuse o nina, e ele dorme. Nada de erudição ou de pedantismo para falar de música clássica. Ele a enfoca indiretamente, através de uma forma acessível a que todos entendem da importância da própria música (outro tema muito presente na correspondência deles), que se revela, ao final, como a de trazer paz a pessoas simples e sensíveis. Uma paz que não equivale a inércia (afinal o novelozinho não pára, enquanto a criança está acordada, ativa e lúdica); mas sim a um renovar de forças para continuar a desnovelar o novelozinho de linha pra cá e pra lá, no dia seguinte.
No entanto, para além de nossa tentativa – como leitores – dialogar com o texto, há ainda a interpretação do leitor-poeta Mário. A divergência interpretativa do poema “Debussy” revelou, já na primeira carta, em maio de 1992, a tensão-confronto entre dois espíritos independentes, até por suas relações se estabelecerem no mesmo nível de igualdade. Marcos Antonio de Moraes, no livro “Correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira”, nos mostra que, “ para Mário de Andrade, Debussy congrega versos que evocam torneios melódicos de Satie. Bandeira, ressentido com a incompreensão, encontra habilmente derivativo na aceitação do múltiplo, escrevendo:
“ Você não sente Debussy como eu: Ainda bem! Sinal que não somos banais ”.
Continua Marcos Antonio: “ A aceitação, porém, não impede a defesa da leitura privilegiada do próprio autor. Na argumentação em causa própria, Bandeira esforça-se para delimitar a parcela engravada nos domínios da vontade, fornecendo chaves para a interpretação, imbricando aspectos teóricos, motivação, desdobramentos da experiência e emoção:
“ [...] Quero prevenir-lhe que aquilo não é todo o Debussy. É aquele aspecto fugace que em falta de melhor apelativo chamarei a sournoiserie de Debussy. Ele começa como quem batuca por desfastio com três notinhas que vão e vêm, a gente sorri e daí a pouco ele pó o dedo a furto numa fibra dolorida e então a gente cai em si e chora ”.
A analogia imagética da música contém todo o percurso do arte-fazer do poema que, em seguida, Bandeira explicita. No que tange à técnica o Para cá, para lá são os primeiros compassos da Rêverie, mas à rebours. Todavia, o argumento definitivo valorizando “Debussy” situa-se no desvendamento da própria alma do poema:
“Há ainda que um dia vi naquela atitude uma meninazinha de três anos, que então acreditávamos inapta para a vida por uma lesão cardíaca precoce, e isso despertou-me uma ternura profunda misturada à lembrança da Jeune fille aux cheveux de lin. E aquele novelozinho de linha que oscila umas três vezes e cai pareceu-me a imagem da vida daquele anjinho e depois, por uma colossal ampliação e sucessão de círculos, a imagem da minha vida, da vida de todos nós, e dos mundos e dos universos”.
E Bandeira termina o trecho, dizendo: (...) “Eu não tive força bastante para sugerir musicalmente, como tentei, este estado d' alma”. E, como resposta, o silêncio de Mário — escreve o organizador do livro de Correspondências.
Sem querer entrar na seara da Anna Paula, é interessante notarmos que, mesmo com visões bastante diferentes de mundo, ambos os poetas têm alguns textos enfocando temas musicais estruturalmente bastante semelhantes: em Sambinha, Mário de Andrade também não aborda diretamente a música, apenas passeia na rua com duas costureirinhas de lá pra cá, de cá pra lá, como Bandeira, em Debussy. Costureirinhas ou crianças com novelos de lã, nestes personagens simples encontrados no dia-a-dia do começo do século passado há aquele olhar coloquial do cotidiano, sem postura elitista ou didática de quem privilegiadamente “entende do assunto”. No caso de Debussy, de Bandeira, ainda se manifesta outro assunto, tantas vezes encontrado na correspondência dele com Mário, que diz respeito ao modo com que a cultura estrangeira é assimilada por pessoas “comuns” – já que a música clássica é praticamente toda estrangeira – desmistificando o preconceito de que, só por não ter cultura, o povo é incapaz de gostar de música considerada “erudita”. Por fim, ressaltamos no poema a reação ao passadismo poético, que reside na própria forma com que Bandeira trabalha a imagem: um novelo, objeto trivial, e uma criança brincando – em vez de privilegiar uma estética elitizada, desconectada com a realidade cotidiana.
Epílogo
Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...
Quando o acabei - a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
O meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura...
– O meu carnaval sem nenhuma alegria!
Robert Schumann nasceu na Saxônia e viveu durante o período de 1810 a 1856. Em 1834 compôs Carnaval, op. 9, que tem como subtítulo “Pequenas Cenas sobre quatro notas” (lá, mi bemol, dó e si natural), como que a ressaltar que ter sido a obra toda criada sobre estas quatro notas. A composição é um intrigante conjunto de peças para piano, retratando um baile de carnaval, por onde passam Arlequim, Pierrot, Colombina, Paganini, Ernestine Von Frieken, Eusebius, pseudônimo que corresponde à natureza intimista de Schumann, Florestan, a sua parte mais extrovertida e alegre, Chiarina, nome sob o qual se oculta o de Clara, sua futura esposa, na época ainda Clara Wieck, Chopin, por quem Schumann devotava profunda admiração, entre outros. Cada um deles é retratado em uma das 29 peças que compõe o Carnaval – daí no segundo verso, Bandeira referir-se a “um carnaval todo subjetivo”, semelhante ao do músico – o que nos lembra as afinidades eletivas, em que Mário acreditava e assumia em cartas.
O paralelismo entre o Carnaval do músico e a sua própria obra constitui-se em um recurso metalingüístico utilizado por Bandeira, autocriticando a sua produção poética, ao enfatizar, claramente, o clima pouco carnavalesco, ou melhor, nada festivo, como seria de se esperar através do título. É como se, de alguma forma, ele justificasse não ter sido suficientemente carnavalesco e/ou musical, frustrando quem esperava do poeta apenas risos, confetes e serpentinas.
Em uma carta dirigida a Mário, Bandeira assim se expressa, confessionalmente:
“Uma qualidade que me fascina em você é a sua musicalidade. É aliás o que mais me seduz na poesia. Eu faço versos para me consolar de não ter idéias musicais”.
Em Carnaval, há rondós e madrigais; baladilhas e descantes (que é uma espécie de cantiga popular, acompanhada de um instrumento, ou desafio de repentistas); mas Sambinha, só em Mário. E, como Epílogo fecha o livro, é como se o poeta optasse por concluir a obra com um pedido de desculpas pela frustração do leitor face a sua inabilidade em ser alegre; porém, ao comparar a festa na música de Schumann, vibrante e colorido, ele revela que o poeta é muito mais interior e místico, transformando o Carnaval em um acontecimento muito mais ligado à Quaresma, do que a festa de Momo. Chega, inclusive, a criar um neologismo “ mortacor” , recurso um tanto raro em sua obra, mais utilizado por Mário do que por ele, muito menos afeito a assistematizações, principalmente gramaticais.
No entanto, ao frisar, em “Epílogo” este anti-climax impactante tão a gosto dos Modernistas, contido entre o título e o tom de um Carnaval real, quase sem fantasias, Bandeira volta a tratar, sutilmente, de outro tema muito debatido nas cartas com Mário, que é a superação das correntes literárias passadistas, em cuja visão o Carnaval se restringe a uma roupagem de euforismo e exterioridade, mais próxima da ação catártica do que do divertimento e da alegria. Cremos não ser pretensão do poeta mostrar um carnaval tão esfuziante quanto o de Schumann em momento algum. O que existe por trás da referência ao músico e à marcante entre os dois artistas, diferença mencionada no poema, é uma crítica ferrenha – através dos versos livres, tão escandalosos para a época – à postura herdada pelas correntes poéticas anteriores. Fica patente a proposital intenção do poeta em rejeitar este legado, principalmente quando encontramos nesta obra a inclusão de "Os sapos" – sátira e manifesto de um poeta inconformado e rebelde diante das limitações da estética parnasiana –, poema que veio a ser declamado, três anos depois, durante a Semana de Arte Moderna, por Ronald de Carvalho, na segunda noite do evento, causando intensa polêmica e inúmeros protestos. Neste sentido, Carnaval cumpre perfeitamente seu papel: o de caracterizar-se por uma deliberada "libertinagem" da composição rítmica (frise-se, musical), subvertendo a forma e o conteúdo de uma festa popular, também essencialmente musical, e conseqüentemente questionando, através dela, todos os valores nacionais por ela mobilizados. Em Carnaval, Bandeira assume a definitiva ruptura com o passado e com as estruturas estabelecidas, como palavra de ordem. Por isso, Mário de Andrade o chamava de “S. João Batista do Modernismo”, reconhecendo o seu papel de anunciador da nova poesia. E Epílogo encerra esta “boa nova”: um carnaval distante do costumeiro, uma poesia diferente da tradicional.
Leila Míccolis
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(*) O presente texto foi apresentado na disciplina “Literatura e Sociedade”, ministrada pelo Prof. Luis Alberto Alves, na UFRJ, no 1º semestre de 2005. O mencionado curso visa estudar como os poetas modernistas, entre as décadas de 1920-50, exploram a especificidade das relações sociais brasileiras em sua obra, sendo suas poesias analisadas à luz da farta correspondência trocada entre eles. O aspecto escolhido e abordado por Leila Míccolis e Anna Paula Lemos foi a música na obra de Manuel Bandeira e Mário de Andrade, tema sempre muito presente e recorrente na epistolografia mantida pelos dois poetas, durante muitos anos de amizade.