CONCURSO DA OFICINA DE ESCRITORES - TEMA: PASSÁRGADA
A Oficina de Escritores é uma Cooperativa de autores de fantástico, que existe na web desde 2000, cuja principal atividade é a troca de análises de textos dos cooperativados e o aprimoramento da escrita, seja através de concursos literários (semanais, quinzenais e anuais) ou de discussões sobre a arte da escrita.
1º lugar:: Vera do Val, "Vou-me embora pra Pasárgada
2º lugar: Maria Helena Bandeira, "Pasárgada, afinal"
3º lugar:
Heloisa Saraiva, "Noite Estrelada"
Tiveram também destaque:
Udo Baingo, com "Pasárgada Revisitada"
Flávio Moutinho, com "Pasárgada"
1º lugar:
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Vera do Val
- Com licença, Majestade, mais um...
- Como? - o rei salta do trono, quase derrubando a coroa - Você tem certeza?
- Sim, Majestade... - o comandante da guarda abaixa a cabeça compungido. - acabei de ser avisado por um dos vigias das ameias. Aproxima-se, já dá para se enxergar à distância...
- Mas isso é demais! Um abuso! - o rei se desespera e começa a andar de um lado para outro no salão dourado. - Demais...
A rainha, impassível, do alto de seus um metro e noventa, não perde a compostura:
- Bem que eu lhe avisei. Ser amigo de poeta dá nisso.
Sua Majestade descabela-se:
- Lá vem você outra vez com essa ladainha.
- Ladainha ou não eu lhe avisei. O sujeito aparece aqui com aquele ar de inocência e você lhe abre as portas. Vai convidando para isso e para aquilo, empresta-lhe sua bicicleta, cede-lhe sua melhor cama, dá-lhe meia dúzia de odaliscas, um pacote de camisinhas, leva para pescar no rio, tomar banhos de mar. Até Iara para lhe contar historias você contratou. Isso para não falar no burro bravo e no pau de sebo. Queria o que?
- E ainda sai dizendo que somos todas prostitutas - diz com voz chorosa a princesa mais nova.
- Mas bem que ele era um pedaço de mau caminho - a princesa mais velha murmura esticando os olhos para o comandante.
- Calem-se, vocês duas. Não foram chamadas para essa conversa - o rei está apoplético - Já me basta sua mãe...
As princesas recolhem-se amuadas.
- O que faço Majestade? - o comandante da guarda diz baixinho, louco para se safar dali.
- Chame o Primeiro ministro.
Como se estivesse a ouvir atrás da porta entra o Primeiro Ministro ajeitando o pincenê no nariz adunco.
- Chamou Majestade?
O rei aproxima-se dele e o toma pelo braço.
- Mais um. O comandante diz que está chegando...
- Majestade, impossível receber mais um. Nossos quartos estão todos tomados, temos poetas, boêmios, andarilhos, sonhadores e malucos saindo pelo ladrão. Por dar-me lá aquela palha resolvem vir para cá. Essa gente toda acha que nossa cidade é a casa da mãe Joana. Aliás, falar em Joana até Joana a Louca de Espanha já está reclamando. Sumiram-lhe os urinóis e ela teima que é aquele poetinha cabeludo quem se apossou deles. As despensas estão vazias, o palácio depenado, a Iara vai se mandar, diz que está rouca de tanto contar historias e o burro bravo morreu. Estamos quebrados, Majestade.
- Eu bem que avisei - diz a rainha lixando as unhas.
- Como eu podia imaginar que ele ia fazer essa propaganda danada? Botar toda a historia em versos e espalhar pelo mundo? Virar essa romaria?
A rainha dá de ombros:
- Ora... Um poeta...
O bobo da corte que até aquele momento ouvira tudo calado aproxima-se do rei e segreda-lhe alguma coisa. Sua Majestade abre um grande sorriso.
- Heureca!!! Se sua idéia der certo ganhará um balde de ouro e será nomeado Conselheiro do Reino!! Chamem os pintores. Depressa.
Dia seguinte no grande portão de ferro da entrada do castelo uma enorme tabuleta com letras garrafais:
"Pasárgada mudou-se."
2º lugar:
PASÁRGADA, AFINAL
Maria Helena Bandeira
O cavalo dava mostras de cansaço, quando as primeiras tochas anunciaram a cidade, entre as montanhas. Eu mesmo já não sabia quem era, não fosse a canção que ainda permanecia na mente entorpecida, como
"Vou-me embora pra Pasárgada."
Com passadas vagarosas, vencemos a estrada iluminada, entre montículos da neve que ainda teimavam em cair.
Minha acompanhante também parecia no limite da exaustão, balançando na sela.
Surgido da névoa úmida, um oficial nos barrou a passagem, segurando o cavalo da mulher
- Quem sois vós, cavaleiros, invadindo a esta hora tardia o território de Pasárgada?
- Sou Joana - ela respondeu com altivez
- A louca de Espanha? O guarda respondeu com uma reverência.
- Sim - respondi - rainha e falsa demente.
O cavaleiro nem perguntou meu nome e nos deixou passar, avisando aos outros
- É o amigo do rei.
Atravessamos as portas levadiças, acompanhados pela escolta.
Eu faço versos como quem morre
de desalento, de desencanto
No meu quarto me esperava a mulher que eu sempre quis, nesta cama que escolhi.
Pasárgada, afinal.
Entre estas Índias de leste e as Índias ocidentais, meu Deus que distância enorme quantos Oceanos Pacíficos, quantos bancos de corais, quantas frias latitudes atravessei sem pensar...
E no entanto estou aqui, diante da minha Estrela da Manhã, ardente como um soluço sem lágrimas com a beleza das flores quase sem perfume, a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos e a paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
E em meio do pente, a concha bivalve num mar de escarlata. Concha, rosa ou tâmara?
Terei a mulher que eu quero nesta cama que escolhi.
Lá fora, o vento varria as folhas, o vento varria os frutos, o vento varria as flores...
Gemiam ondinas nos repuxos das fontes. Faunos aparecem.e salamandras desfalecem nas sarças, nos braços dos bruxos.
Não posso crer que se conceba do amor senão o gozo físico. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com meu corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. E a volúpia é bruma que esconde abismos da melancolia...
Ao longe a lua se perde. Ao meu redor, estão todos dormindo, dormindo profundamente. E eu sem família religião ou filosofia; mal tendo a inquietação de espírito que vem do sobrenatural, eu quero a estrela da manhã. Pura ou degradada até a última baixeza.
Pasárgada, afinal.
A mesa posta, a casa pronta e cada coisa em seu lugar
A aurora apaga-se e eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. O dia vem, e dia a dentro continuo a possuir o segredo grande da noite.
Não espero o sol claro e me dirijo ao palácio.
- Licença, meu rei.
- Entra, Bandeira, você não precisa pedir licença.
3º lugar
NOITE ESTRELADA
Heloisa Saraiva
Ela se sentou, respirou fundo.
Desktop, NE, um, dois, vamos lá. Pronto: um clarão na tela e logo apareceu o céu estrelado - a porta de entrada. E lá estava ela, feliz da vida, caminhando pelas ruas estreitas de uma cidade medieval. Ela, a prostituta de dentes branquíssimos que seduz o príncipe e muda-se para o castelo. Em poucas horas seria o casamento, mas ao invés do vestido de noiva tudo o que vê é a noite estrelada: a porta de saída. Que diabo, pensou, tinha que ser agora? O banquete ainda nem estava servido e ela já expulsa de sua pasárgada, de volta à tela vazia e à solidão do quarto, sem falar do despertador e da inevitável dor de cabeça, companheira constante quando a raiva lhe esquentava o sangue. Antes de tomar um comprimido, tentou outra vez.
Desktop, NE, um, dois, vamos lá. De novo o céu estrelado, a noite explodindo em luzes como fogos de artfício. Está no espaço, no comando de uma nave prateada, vendo os anéis de Saturno e os asteróides em forma de diamante. Seus comandados lhe perguntam qual o próximo objetivo, ela aponta a Terra: não há planeta mais atrasado, acreditem. Aumenta o movimento, soam as sirenes avisando da iminência do ataque. Preparam-se todos. Não dá tempo. A noite estrelada invade a nave e tudo se escurece. O quarto parece ainda mais sombrio, a janela mais estreita. Deitou-se na cama, lambeu as lágrimas: teria por acaso cara de idiota?
Procurou o representante da firma que lhe vendera o programa. Não podia tolerar que tudo acabasse no melhor da festa, era pior que tirar doce de criança. A empresa aceitou a queixa e garantiu que tudo seria rapidamente resolvido. Brilho de esperança e sorvete para comemorar. Amanhã.
Finalmente. Desktop, NE, um, dois, vamos lá. E mais uma vez a noite estrelada com suas luzes e promessas. Mas ué, onde estou? Justamente no escritório, o cinzento escritório de todos os dias. Outro defeito? Talvez não. Havia medo nos olhos de todos e ela tinha uma potente metralhadora nas mãos. Sorriu, acionou a arma. E foi-se o chefe, o subchefe, a secretária tão loura quanto insuportável, todos desmoronando como castelos de areia. Sange, gemidos, uns tentavam correr mas eram alcançados antes de chegaram à saída. Quando não havia mais um em pé, voltou-se contra as máquinas, as lâmpadas, os armários. Até que disse: chega. Sentou-se no chão, esperou. Já começava a sentir saudades do chinelo velho e da cama macia, onde está você noite estrelada? Os olhos ardiam, a garganta queimava, fumaça, fumaça, e as labaredas, cada vez mais perto. Aproximou-se da janela, jogou-se nos braços da noite que chegava devagar.. Estrelada? Não. Céu encoberto, chuvas ocasionais.
PASÁRGADA REVISITADA
Udo Baingo
"A impermanência é uma característica dos dias de hoje, mais do que dos dias da Bíblia. A unidade de Deus faz a lembrança necessária, assim como a exegese de um sinônimo para um ator permanente nas brumas da existência. Poderíamos ter dias mais calmos sem pensar em coisas acontecidas, quando a unidade de Deus nos pede racionalidade, abstração e poder de lembrança infinita."
Ari acordara mal disposto e controlava um texto seu. Beleza destoada pela poluição do inverno paulista podia-se sentir nessa manhã. A falta de chuva fez acumular uma densa cortina de gases sobre São Paulo, ele se agarrava às cobertas, apertando elas à sujeira de seu corpo depois de mais uma noite na Pasárgada. Lia seu esboço: "...por um lado Deus pede interioridade, ao invés da exterioridade entrevista em adorações de seres ou de objetos, por outro lado a exterioridade de um Ser único." Ari mantinha palestras consigo mesmo sobre sua obra. A sua musa sempre foi seu pensamento e mais nada. Continuava lendo: "A necessidade da pluralidade dionísica e sua melhor lembrança, alinhavando a via do pensamento humano, precisava ser dito, não contrariava a essência da unidade de Deus."
Ari resolve enfim acordar e escolhe a roupa que transmita o mais comum sentimento. No banheiro toma um banho bom e sai. O seu corar do rosto e gesto de eterna e profunda interrogação deixa rastros por onde passa. As pessoas olham para Ari, pois ele olha para tudo interrogando. Foi quando avista a casinha verde no meio da rua, algumas meninas como que esperando por ele defronte.
Pergunta à dona da casa o funcionamento e ela responde como uma empresária. "Durante sua permanência em nosso recinto nossas garotas cuidam do Senhor. Se desejar, o Senhor pode trazer seu preservatório ou nós podemos oferecer-lhe preservatórios próprios de nossa casa..." Etc. Ari entra, toma um drink, escolhe uma menina boa com a qual não transa, conversa uma ou duas horas, paga e vai embora pra Pasárgada. O sol bate forte por lá. Pensa: "...o sol vive da impermanência de seus fótons, que são criados pela excursão de partículas pequenas através de camadas representando a energia necessária. E conhecemos o sol apenas pela permanência da luz, mas sabemos que ele é impermanente, às vezes há mais vento solar, outras horas menos, uma hora o sol apagar-se-á e outra permanência deiforme será esvanecida existindo, outra centelha queimará de desejo..." Debaixo de sua língua um tablete lisérgico faz cócegas, ele se derrete antes dele poder senti-lo com sua língua. Então acorda, o rascunho de um conto debaixo de seu braço.
PASÁRGADA
Flavio Moutinho
Onde estou, ouviu o Primeiro Cavalariano do forasteiro de madeixas douradas.. Do alto de seu cavalo negro, contraste de peles qual tabuleiro de xadrez, o estranho prosseguiu - Há dias erro pelos prados e colinas tentando chegar a Pasárgada, mas só o que vejo são mais prados e colinas até onde a terra se transforma em firmamento.
- Quem pergunta? - quis saber o soldado.
- Leve uma notícia ao seu Senhor, Dom Manuel, o Poeta. Diga-lhe que Dom Felício, o Louro, duque das terras além de Algaravia, deseja falar-lhe..
O monótono relevo do entorno testemunhou a comoção em que as palavras de Dom Felício deixaram o pobre militar, cujos olhos bem poderiam explicar, bastante convincentemente, o dilúvio bíblico. E se pôs a contar, entre nobres soluços e engasgos, suas razões:
- O Senhor Duque então não soube do falecimento do rei Dom Manuel? Faz um lustro e meio, nosso soberano caiu doente, e não houve na corte quem lhe curasse as chagas. Vieram médicos e alquimistas. Os pulmões empedraram, diziam, tentaram diversos ungüentos, emplastros, elixires, mas nada foi capaz de o fazer voltar a respirar. Até que, na manhã do solstício de inverno, todos preparados para os festejos, sentou a alma de Dom Manuel, no céu, ao lado do bom Deus.
"Luto decretado em toda Grande Pasárgada, até o equinócio de primavera não houve bandeira hasteada de mastro inteiro; não sei, pois, como a notícia tanto tardou a chegar a Algaravia, quando sete anos já se passaram.
"Nosso caríssimo rei veio a falecer sem herdeiros. Seus irmãos, Dom Antônio e Dona Maria Cândida, havia tempo estavam mortos. Imagina, portanto, Vossa Senhoria, as batalhas que se deram pela ocupação do trono. Surgiram primos distantes de quem jamais se ouvira falar, mulheres várias a chamar seus filhos de príncipe, bastardos loucos pelo poder.
"Instalou-se, então, uma Regência Trina, formada pelo Visconde de Moraes, primeiro-ministro do falecido rei; Duque de Drummond, primo distante, terceiro ou quarto grau, trazido rapidamente de além das fronteiras com Francia; e Marquês de Andrade, um nobre até então desconhecido, Senhor de distantes terras em Macunaíma, que ninguém até hoje entendeu como fizera para compor a regência.
"Foi conturbado o período, pois, como disse, os parentes se acotovelavam por um lugar de prestígio junto à corte. Mas, graças a Deus, as trevas tinham data para terminar. Faltava um lustro para os dezoito anos da Princesa Helena, sobrinha-neta de Dom Manuel. Sua Alteza se preparava, enclausurada entre as Carmelitas, para assumir o trono de Pasárgada. Seu nome era o único consenso, mas a idade a impedia de se sagrar Rainha".
"Há dois anos, veio finalmente sua maioridade. Com a coroação da nova rainha, os ânimos se acalmaram e a paz voltou a ser soberana em Pasárgada. Por isso, diz-se por aqui que devemos nossas vidas à Rainha Helena, como antes devíamos ao rei Dom Manuel.
"Mas basta a mim de tanto falar e ao Senhor Duque de tanto ouvir. Siga-me, cavaleiro, que eu o levarei para se ter no palácio com nossa rainha".