Notas para uma Carta de Pessoa para Mário Beirão, amigo (1913)

Fico imaginando, no século XX, a extrema angústia porque passava o poeta, com seus desdobramentos de personalidade - segundo ele denominados de "histérica", mesmo não tendo um útero - de seus heteronômios.
Nessa missiva, Fernando pessoa descreve seu desdobramento. Hoje, o desdobramento é uma Ciência, comprovada cientificamente. Os tempos nos levam a estudar melhor vários fenômenos, que outrora eram contabilizados como crendices ou sandices.
Uma das importantes diretrizes deste século, por exemplo, é o estudo da projeciologia.

No Brasil, estudos de Waldo Vieira e outros comprovam inúmeros momentos em que saímos do corpo físico, o que se convencionou denominar de projeção. O IIPC (Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia), promove cursos e estudos profundos. Certa feita, uma de amigas, médica, veio a Belo Horizonte, fazer palestras no tema e minha querida Ir Josephina, à época octogenária, foi assistir e voltou encantada coma nova Ciência-apesar de freira e "antiga", mas de cabecinha muito atualizada. Ela, a primeira pessoa que publicou uma crônica de minha autoria, Mestra de Psicologia e Português, a quem amo com gratidão...
Muitos entram no "não li (não vi, não conheci, etc.) e não gostei", uma das mais renomadas tolices que já se disse. "Provai de tudo e ficai com o que é bom", aconselhou S. Paulo. E, pela Caballa, sabemos que teremos de prestar contas por tudo que NÃO fizemos ou NÃO conhecemos, quando nos formos aqui da Terra...

Fernando Pessoa, ao se desdobrar em outros autores, todos com histórias definidas, lançou nesses protagonistas, suas ansiedades, frustrações e desejos. Sim, poderiam ser apenas produtos de seu imaginário, da criativa mente de alguém com hipersensibilidade, o que gera sempre, superdefesas. Mas o interessante é verificar que a Poesia foi sua válvula de escape, e para ela canalizou os protagonismos de seus heteronônios.
Quanta força hercúlea, na aparente fragilidade do superego! Imagino como deve ter se sentido, no epicentro desse vórtice, em torno do qual gravitavam suas outras personalidades.
Como psicóloga, sinto atração plenilunar por essas pessoas que não parecem caber dentro de sua própria história e, por mecanismo de defesa do ego, se multifacetam, multifragmentam-se, pensando que se multiplicam... Pessoas de crença espírita, obviamente, interpretam os desdobramentos como lembrares de vidas passadas.
Na década de 70, quando eu fazia crítica literária na Gazeta Comercial de Juiz de Fora e no tablóide de vanguarda Urgente, a Imago Editora, especializada em ficção & psicologia, enviou-me um interessante livro, de Clesio Quesado: "O Constelado Fernando Pessoa". Realmente, com tanto brilho, podemos imaginá-lo sendo, sozinho, "de per si", uma constelação de poetas... À força das muitas mudanças ou dos "amigos do alheio", perdi esse livro - quem sabe encontro outro exemplar no famoso sebo "Livraria Alfarrábio", daqui de Belo Horizonte. Saí de lá, noutro dia, com "Une Femme" (Editora "Presses de la Renaissance"), a história de Camille Claudel, escrita por Anne Delbée - e mais um dicionário de Francês editado no Porto, em Portugal, para o caso de não lembrar lá muito bem de algum termo dessa Língua bem amada. Desde a adolescência, fascinava-me a história dessa escultora, que foi amante de Rodin e era irmã do poeta Paul Claudel. Para ela, fiz muitas poesias. Qualquer dia postarei aqui.

Mas daqui a pouco, será aniversário de Fernando Pessoa... Voltemos a ele...

Eis um pouco dessa missiva para seu amigo Mário Beirão (**):

               "Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na agricultura, se costuma chamar "crise de abundância".

               Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura escuramente outras. V. dificilmente imaginará que a Rua do Arsenal, em matéria de movimento, tem sido a minha pobre cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei o que são, cartas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma - para a bruma - pela bruma...

               Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar o seguinte fenômeno que julgo curioso. V. sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia a caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve trovoada, mas esteve iminente e começou a chover - aqueles pingos graves, quentes e espaçados - ia eu ainda a meio caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que V. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto (*) - acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa -, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso do desdobramento é a coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de intensidade... " (**)

Clevane Pessoa de Araújo
em 12/06/2006 às 22h39

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(*) O soneto aludido chama-se "Abdicação".
(**) Carta do livro "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação" (Ática).

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