Bons e maus selvagens
Cenário: tinha um rio, campinas, morros, montanhas, ouro, diamantes, além de florestas a perder de vista, densas como um sonho. Dorotéia também tinha. Doroteu também. Este é um pastor forte, compenetrado, calmo como um budista; aquela, sua musa inspiradora, mas que não se contentava ficar ou ser apenas musa, pois também pastoreava. Onde mesmo? Numa natureza exuberante, o paraíso perdido, agora achado, e o casal Dorotéia e Doroteu no seu centro e na sua periferia: em Vila Rica. Deviam estar felizes, mas não. Nada.
Tudo conforme o Arcadismo: uma verdadeira Arca de Noé. O bicho-macaco, o bicho-onça, o bicho-tamanduá, o bicho-preguiça, o bicho-lobo-guará, o bicho-minhoca, uma quantidade indefinida de bichos já nomeados, e um tanto de indefinidos outros ainda não nomeados, juntamente com uma flora diversificada, com ipês amarelos, roxos, azuis, vermelhos, verdes; com mangueiras, laranjeiras, jatobás, e flores : margaridas, rosas, girassóis, flor-de-lótus, crisântemo, palmas, miosótis, orquídeas, papoulas, lírios, dálias, nenúfar, cravos, gerânios, e o infinito de outras. No entanto, Dorotéia e Doroteu não estavam felizes.
Pela manhã, Dorotéia acordava bem cedinho, e ia colher, ou pastorear, flores:
— Olha, margarida, lá vem a Dorotéia – dizia um cravo, enquanto um vento o soprava para o sul.
— Hoje vim colher gerânios e girassóis! nem adianta, rosa, você, só amanhã.
Dorotéia, no entanto, nada colhia. Apenas cheirava, contemplava, e o que é mais incrível, acreditem: conversava com elas. Mas numa linguagem diferente, digamos, um esperanto* composto de signos humanos e inumanos, como um desabrochar de um broto, um verde mais azul, uma nuvem em forma de caranguejo a leste, um sabiá na cerca, o cavalo Guarani relinchando, Doroteu bocejando, a cadela Afrodite dormindo, um sapo coaxando, uma coruja piando. Tudo era linguagem, um esperanto de gestos, de ventos, de cores, de cheiros, de audições, de tatos, de olhares, de sabores, de sensações-rosa, de sensações-lírio, de sensações-peixe. Dorotéia e Doroteu a tudo interpretavam, e eram, mesmo assim, profundamente infelizes.
Doroteu pastoreava. Não ovelhas, que ali, em Vila Rica, não existiam, naquela época. Pastoreava o concerto da biodiversidade. Como Hermes*, ele era uma espécie de tradutor esotérico do cosmo, o médium encarregado de filtrar as mais diversas línguas, a língua-nuvem, a língua-sol, a língua-lua, a língua-rio, a língua-vento, a língua-cérebro, a língua-sangue, a língua-coração, a língua-medo, a língua-noite.
Ele (sim, Doroteu, porque aqui é só ele e ela, sem o eu, sem o tu, tudo terceira pessoa) passava os dias conversando, e principalmente ouvindo muito. Dorotéia ficava, às vezes, preocupada, pois tinha receio de que Doroteu, de repente, esquecesse, como falante nativo de tantas indefinidas línguas, a língua do amor, transformando-a numa íngua, numa rima, numa dor. Doroteu, todavia, era um falante portador de uma loquacidade invejável, na língua de Eros e de Afrodite. Ainda assim, faltava algo, e a felicidade não existia.
Para o melancólico Cláudio Manoel da Costa, faltava a Nise, a corte, a independência do Brasil, embora estivesse, lá, em Vila Rica, numa casa de pau a pique, perto da Igreja de São Francisco de Assis (feita por aquele estranho Barroco, o Aleijadinho), muito bem instalado na mãe natureza. Para Tomaz Antônio Gonzaga, faltava, preso, ou livre, - lá, em Moçambique – a Marília, o que, definitivamente, o indispunha para a beleza simples e louvável do campo, transformando-o num satírico e urbano exilado da natureza, com sua bondade eterna.
Para Doroteu e Dorotéia, tudo que aquele filósofo iluminista francês preconizava (quem mesmo?, o Rousseau), lá, em Vila Rica , tinha. Ambos, ele e ela, eram os bons selvagens, nasceram livres, na natureza, integrados. Pecado Original, que significava? Sequer sabiam, porque o pé de maçã não existia, naquela época, em Vila Rica , não havendo, portanto, o fruto do bem e do mal, o conhecimento especificamente humano, desafiador, baseado numa concorrência suicida com Deus. Um conhecimento, portanto, fundado na inveja, já que aspirava o e ao posto de Deus.
Na Vila Rica de Dorotéia e de Doroteu, tudo era perfeito. Carpe Diem: eles viviam o dia todo, e não dispensavam a noite, sempre com moderação. Roça: pasto, curral, leite tirado na hora, jabuticabeira, mexerica, mel de abelha. Bucolismo, clareza , concisão, objetividade, universalidade, regularidade clássicas (embora aqui haja um “erro” barroco, cuidado) Sujeito no princípio, predicado no fim, sem retorcimentos e exageros do estilo anterior: novamente o Barroco. Só não tinha, da herança do Clássico, uma coisa: o antropomorfismo ou o antropocentrismo*, dá no mesmo.
Doroteu e Dorotéia jamais admitiriam o mal civilizacional, chamado antropocentrismo, contaminar o paraíso idílico e lírico de Vila Rica, porque sabiam que o antropocentrismo, sendo um traço da cidade, uma invenção da cultura, era profundamente prejudicial e nefasto, já que consiste numa forma de arrogância do homem urbano (Clássico ou Neoclássico, que seja), que o faz achar ser superior aos outros seres, pois transforma todo o universo em espelho para a sua própria imagem, inviabilizando, assim, por completo, o esperanto cosmológico, a língua pluri-universal, humana, mineral, vegetal e animal. Afinal tão bem falada e ouvida e vivida por Doroteu e Dorotéia, no paradisíaco ecossistema de Vila Rica.
Entretanto, eles eram (por quê, meu Deus?!) incompreensivelmente infelizes.
Dorotéia e Doroteu eram realmente diferentes. Diria, digamos, fora de época, e, do interior da bucólica Vila Rica, ninguém sabia o que significava “convencionalismo artificial da linguagem árcade”. Eles desconsideravam, por exemplo, uma espécie de princípio machista inscrito na receita de como fazer um belo poema árcade, qual seja: a de um eu lírico, sempre masculino, cantando para uma musa inspiradora. Tudo estaria perdido, se Dorotéia não compusesse seus próprios poemas líricos, se não pudesse escrever sua épica feminina, invertendo os papéis, tornando Doroteu sua fonte de inspiração, ante uma natureza harmônica, compassiva e hospitaleira.
Obedecer à fórmula poética importada da Europa (para eles, tão esclarecidos, tão iluminados) seria um retrocesso, já que mesmo a Idade Média, considerada o porão do Ocidente, tinha permitido uma certa liberdade para o olhar feminino, através, por exemplo, do eu lírico da Cantiga de Amigo, sem contar suas feiticeiras e bruxas, com seus misteriosos poderes de outro mundo.
Mas mesmo assim, mesmo sendo Vila Rica um imenso campo agradável, onde homem e mulher, macho e fêmea tinham os mesmos clássicos e neoclássicos direitos universais, Dorotéia e Doroteu não conseguiam a plenitude da felicidade.
Numa tarde, após uma bela manhã de sol de verão, vivendo o “carpe diem” de cada estação, uma tempestade repentina varreu Vila Rica, como nunca tinham visto Doroteu e Dorotéia. Ambos se esforçaram para entender a linguagem do relâmpago e a do transbordamento do riacho ( que invadiu a encantada choça deles ), mas não conseguiram: seus signos eram babélicos, intraduzíveis.
De repente, como se tivessem comido a fruta do bem e do mal, ficaram com vergonha da própria nudez, e se lembraram que eram só pseudônimos. Então eles abriram seus sonolentos olhos rurais, e viram, no centro da Cidade de Vila Rica, a cabeça de Tiradentes exposta, como troféu, para todos: bons e maus selvagens.
Luis Eustáquio Soares