Música e arte plástica – Concepção de Schopenhauer – A música e o mito trágico – Imagem e conceito – A arte dionisíaca (*)
Não vou considerar aqui todos os outros impulsos adversos que trabalham contra a arte, e precisamente contra a tragédia. Quero falar apenas da oposição mais ilustre à consideração trágica do mundo, e com isso me refiro à ciência, otimista em sua essência mais profunda, com o seu progenitor Sócrates à testa. Será mister também mencionar um renascimento da tragédia – bem-aventurada esperança para o ser alemão!
Em oposição a todos aqueles que empenham-se em derivar as artes de um princípio único, tomado como fonte vital necessária de toda obra de arte, detenho o olhar naquelas duas divindades artísticas dos gregos, Apolo e Dionísio, e reconheço neles os representantes vivos e evidentes de dois mundos artísticos diferentes em sua essência mais funda e em suas metas mais altas. Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador do principium individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a redenção na aparência, ao passo que, sob o grito júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da individuação, ficando franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas . Essa imensa oposição que se abre abismal entre a arte plástica, como arte apolínea, e a música, como arte dionisíaca, reconhecendo-se, a esta, um caráter e uma origem diversos de todas as outras artes, porque ela não é, como todas as demais, reflexo do fenômeno, porém o fenômeno imediato da vontade mesma, e, portanto, representando, para tudo o que é físico no mundo, o metafísico; e, para todo o fenômeno, a coisa em si, que Schopenhauer falava em “O mundo como vontade e representação”. Sobre esse reconhecimento, o mais importante de toda a estética, Richard Wagner imprimiu o seu selo.
Talvez possamos tocar esse problema primordial com a seguinte pergunta: que efeito estético surge quando aqueles poderes estéticos, em si separados, do apolíneo e do dionisíaco, entram lado a lado em atividade? Ou, de uma forma mais sucinta: como se comporta a música para com a imagem e o conceito? É em Schopenhauer que Richard Wagner se enaltece. Afirma Schopenhauer: “Podemos considerar o mundo fenomenal, ou a natureza, e a música, como duas expressões diversas da mesma coisa. A música é, quando encarada como expressão do mundo, uma linguagem universal no mais alto grau. A sua universalidade não é de modo algum aquela universalidade vazia de abstração Assemelha-se às figuras geométricas e aos números, os quais, enquanto formas universais de todos os possíveis objetos da experiência e a todos aplicáveis, a priori, não são, apesar de tudo, abstratos, porém intuitivos e inteiramente determinados”.
Continua Schopenhauer: “A partir dessa relação interior que a música mantém com a verdadeira essência de todas as coisas explica-se também que, ao soar uma música adequada a qualquer cena, ação, ocorrência, ambiente, ela pareça descerrar-nos o sentido mais secreto destes, e se apresente como o seu comentário mais justo e claro. Pois, como dissemos, a música difere de todas as artes pelo fato de não ser reflexo do fenômeno, ou, mais corretamente, da adequada objetividade da vontade, porém reflexo imediato da própria vontade. A melodia é análoga ao espírito interior do fenômeno dado”.
E ainda: “As melodias são como conceitos universais. Pode-se expressar muito bem essa relação na linguagem dos escolásticos, ao se dizer: os conceitos são os universais posteriores à coisa (universalia post rem); a música, porém, dá os universais antes da coisa (universalia ante rem) e a realidade dá os universalia in re (universais na coisa). Todavia, que seja possível em geral uma relação entre uma composição musical e uma representação intuitiva, isto se baseia no fato de ambas serem expressões, só que totalmente diversas da mesma essência interna do mundo. A analogia entre as duas coisas, descoberta pelo compositor, há de ter surgido, no entanto, do conhecimento imediato da essência do mundo, sem o conhecimento de sua razão” .
Entendemos portanto, segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem imediata da vontade, enformando o mundo de espíritos que nos fala, mundo invisível e no entanto tão vivamente movimentado. Duas são as classes de efeitos que a música dionisíaca costuma, por conseguinte, exercer sobre a faculdade artística apolínea: a música estimula à introvisão similiforme da universalidade dionisíaca e deixa então que a imagem similiforme emerja com suprema significatividade. E onde mais haveremos de buscar tal expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito do trágico? Somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. A arte dionisíaca, que leva à expressão a vontade em sua onipotência: por trás do principium individuationis, a vida eterna está além de toda a aparência e apesar de todo aniquilamento. A alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é para o nosso prazer, negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum pelo seu aniquilamento. “Nós acreditamos na vida eterna”, assim exclama a tragédia, enquanto a música é a Idéia imediata desta vida. Na arte dionisíaca e no seu simbolismo trágico, a mesma natureza nos interpela com sua voz verdadeira, inalterada: Sede como eu sou! Sou a mãe primordial eternamente criativa, eternamente a obrigar à existência a satisfazer-se eternamente com essa mudança das aparências.
Nietzsche
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(*) Capítulo 16 do livro "O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo", trad. notas e posfácio de J. Guinsburg, Companhia das Letras, 2{ ed., 5 reimpressão, 2001, SP