Primavera autônoma das estradas
No final dos anos 80, uma professora que deixava Santos, onde lecionávamos, devolveu-me um livro que nunca fora meu: “Primavera autónoma das estradas” (Assírio e Alvim, Lisboa, 1980), de Mário Cesariny. Ela garantia que era meu. “Tem a sua cara”, dizia. Fiquei lisonjeado, mas não tenho muito a ver com Cesariny ou o surrealismo.
Admiro muito o primeiro, que chegaram a considerar o maior poeta português, apesar da genialidade de Fernando Pessoa. E admiro mais o segundo, embora seus pressupostos sejam bem contra os meus princípios artísticos: a escrita automática, por exemplo, enquanto eu quero que a poesia seja fruto do trabalho com a palavra. Escrever o que vem à cabeça qualquer tonto faz, transformar essa barafunda inspirada em um poema é que são elas.
Digo isso com a autoridade, se é que um poeta tem autoridade, de quem aprendeu a poesia com Drummond e Murilo Mendes – os dois me ensinaram a buscar a palavra concreta, longe dos artificialismos abstratos. Nem houve poesia surrealista no Brasil, mas Murilo Mendes sempre foi tido como um poeta surrealista. Confundem as imagens fortes, violentas até, de claro teor expressionista, com a vagueza surrealista. Não é nunca o nonsense pelo nonsense, para fazer graça, chocar, impressionar.
Mas Mário Cesariny morreu dia 26, domingo. Tinha 83 anos de idade e há 59 carregava a bandeira do Surrealismo em Portugal. Não é porque eu não aprove o Surrealismo, assim ao pé da letra, como Escola, portanto mentiroso, porque a desorganização de suas obras é muito bem organizada, – não é porque seja contra que eu não reconheça que Cesariny foi uma grande poeta.
E eis-me aqui folheando a sua “Primavera autónoma das estradas”, com saudade do autor, prestando-lhe a minha homenagem. Começo pelo título. Parece sem sentido, ou redundante: toda primavera é autônoma, principalmente a das estradas. É o nó da questão: nós nos esquecemos que a primavera é autônoma, livre, sem regra nem moral. A sua moral, como não poderia deixar de ser, é a da flor: a beleza.
Cesariny foi uma pedra no sapato da ditadura de Salazar. Censuravam-no porque era homossexual, dizem. Também as esquerdas ou a democracia o enxotaram dos círculos oficiais. O problema era a sua liberdade. Ele era a flor da primavera autônoma das estradas. Era autônomo, entoava com sua própria voz o seu surrealismo.
No poema “cadame” dá a chave da sua poética (ou não-poética): “olhar é desaparecer”. A “poética do olhar” é a pedra de toque de toda poética: a arte vem do olhar – a coisa se torna imagem, portanto, arte. Pois Cesariny diz: “olhar é desaparecer”. Destrói toda poética do olhar. O que quer que ele tenha querido dizer com esse “desaparecer”. Tomemos literalmente: a coisa desaparece, não se torna imagem, nem nada. A coisa é. Não quis dizer que a coisa deixou de ser, com aquele “desaparecer”. Quem desapareceu foi o olhar. A coisa ficou, em si.
“O lorinhão escorreito” talvez seja o melhor poema do livro. Está pleno de definições, que pulam do nonsense para a sabedoria pura (leia-se: poesia). O suplício de Tântalo: “uma luz muito íntima que me aquece à noite.” A coragem? “É uma igreja dentro duma noz.” A infância? “Uma ilha que emerge rapidamente.” A minha mãe? “Um mendigo que espera pela noite para rir.” E nós? “Os olhos do pássaro morto em viagem.” Pode parecer trágico: é poesia, que afinal é a essência da tragédia.
Um dos últimos poemas, “segismundo”, passa Freud a limpo. Sem a mácula do esperma, “substanto primordial”. Sem a mácula da morte, “o começo”, “a viagem do sim, do não e do nunca”. Depois de sexo e morte, “os estudantes andaram, em direcção ao mar onde um grupo, numeroso, foi visto desaparecer.” Outra vez o verbo “desaparecer”. Sexo e morte noves fora – “ e abriu-se um livro, como um alcarnoz, no horizonte cerrado.”
A poesia de Cesariny, como um “alcarnoz” (o que quer que seja isso), abre horizontes.
José Carlos Mendes Brandão