QUAL É A SUA GRAÇA?
Em 1968 (mas este ano não termina?), o apresentador de um show musical sobe ao palco do Teatro Toneleros e diz o seguinte: “Meu nome, como alguns dos senhores já devem saber, é Millôr Fernandes. O que já não é uma novidade e ainda não é uma garantia.”Alguns giros a mais (pois estou escutando um disco de vinil), o mesmo apresentador informa: “Aos 13 anos, eu comecei a fazer humorismo e, imediatamente, fiquei famoso em várias partes do mundo – todas elas no Brasil.” Muito bem, logo se chega a uma conclusão: Millôr Fernandes zela mesmo pelo seu nome, pois reconhece que os outros o consideram famoso, além de ter sido no início da sua adolescência – portanto, ali por volta de 1938 – que este nome começou a repercutir.
Seguramente todos estarão fartos da seguinte história, que eu só repito por óbvia necessidade: Millôr Fernandes nasceu Milton Fernandes, e teria continuado Milton não fosse o dolce stil novo de um tabelião ao deslocar o traço da letra T para cima da letra O , e fizesse o N parecer um R . Para mim, estava criado o poema concreto; mas, para muitos, surgira o nome mais marcante do humorismo brasileiro. Pensando bem, uma coisa não exclui a outra.
Agora só se fala em Millôr – que faz parte desse raríssimo fenômeno do humor de criar nomes tão marcantes quanto sobrenomes, a exemplo de Ziraldo. (Henfil, Jaguar e Borjalo não valem, porque são acrônimos). Experimente chamar Bernard, Saul e James pelo nome e, possivelmente, muitos atenderão, ou então ninguém. Mas chame Shaw, Steinberg e Thurber, e logo aparecerão as decisivas influências de Millôr, que muito contribuíram para incentivar, espiritualmente, o talento que é 1% inspiração e 99% expiração, como declarou o Thomas, ou melhor, o Edison, o inventor da lâmpada elétrica que, ao menos nas histórias em quadrinhos, simboliza uma boa idéia. Pois como trabalha Millôr Fernandes, como expira! E tudo com carteira assinada, embora nas mais diversas atividades: seu nome está em traduções, em crônicas, em desenhos, em cartuns, em charges, em painéis, em capas de livros, em capas de discos, em ilustrações, em 5142 apotegmas, rifões, provérbios, devaneios, cismas (a lista é longa) que formam o seu pensamento definitivo. O que para muitos seria mero apocalipse, para ele é a Bíblia do caos.
Mas aqui volto ao tabelião que, com seu garrancho, criou o nome Millôr. Foi ele, funcionário rotineiro, que fez surgir a situação humorística que perdura até os nossos dias. Pois, quando se lê seriamente o livro de Henri Begson sobre o riso, logo se descobre que é errado dizer “só dói quando rio”; o certo é dizer “só rio quando é humano”, pois nenhuma paisagem é humorística, e mesmo os animais, quando fazem rir, é porque neles foi possível surpreender “uma expressão humana”. Segue o filósofo: a situação humorística é também criada por um “efeito de rigor mecânico”, quando o corpo realiza um movimento rotineiro mas as circunstâncias exigem outra coisa. O exemplo ilustrativo é o da pessoa que cai ao tropeçar numa pedra, em vez de modificar a velocidade ou a direção e, assim, desviar-se da coisa. Pois o humor é um corte abrupto (pode ser desde os simplíssimos tombos da era do cinema mudo, a torta na cara que desanda com a elegância, até a palavra justa que, encaixada numa sentença, produz o riso mais escancarado ou filosófico, ao questionar a ordem do mundo). Em outras palavras: Millôr é Milton em situação, Millôr é o resultado humorístico, aleatório, imprevisto (agora imprevisível) de um lapso: o retrato 6x9 de um original 3x4. Millôr é o acidente de percurso, na ordem daquele cartório, que agora virou quintessência de humor. Durma-se com um barulho desses.
Trinta anos dele mesmo? Bem feitas as contas, a partir de 1938, seriam agora 70 anos. Mas o tempo não existe – somente o passar do tempo; e, seja como for, o nome Millôr permanece, impávido, com o acento que resiste a todas as reformas ortográficas – incluindo a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 , adoptada em Portugal, mas não no Brasil. Não parece engraçado?
Não dá mais para disfarçar que estou comentando, desde o início, o livro Um Nome a Zelar (Desiderata, R$49,90), e não produzindo o maior nariz de cera da imprensa brasileira. Neste livro se fez uma descoberta impressionante: Millôr Fernandes concebeu mais auto-retratos do que Rembrandt (para surpresa de muitos, outro artista que atendia pelo nome, pois se chamava, completamente, Rembrandt Harmenszoon van Rijn). De novo: tente chamar Pablo ou Juan e veja se Picasso e Miró atenderão... Os diversos Millôres são apenas um, mas cada um que vou te contar! Exigem, os diversos, reflexões que ora tendem para o lúdico, ora para o simbólico, ora para o alegórico, o incidental, o surpreendente, o sugestivo, ou isto e aquilo. No prefácio, Mario Sergio Conti lembra muito bem que “ao contrário dos de Rembrandt”, os auto-retratos de Millôr não seguem uma seqüência, “não descrevem o trajeto da juventude à velhice”. O nome a zelar: eis a fonte da juventude.
E qual o meu Millôr preferido? Como as páginas do livro não foram numeradas (talvez porque o nome seja uno e indivisível, além de primo), tentarei descrever os melhores: aquele em que as letras estão penduradas num varal, assim como o acento circunflexo, feito um recém-lavado capuz; aquele construído dentro de casa, no qual as duas letras L formam dois alçapões; aquele no qual o O é um pôr do sol ou um sol nascente (não ficou bem claro), e o passarinho é o seu acento. O preferido é o nome Millôr jogado na rua por uma senhora que faz a faxina da casa, para perplexidade dos passantes.
Com a multiplicação do nome, está realizado o milagre que ultrapassa o sonho de Mário de Andrade (“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”) e os heterônimos de Fernando Pessoa. No livro, o nome Millôr é uma imagem, porque sempre desenhado. E, se uma imagem vale por mil palavras, então paro por aqui, já que acabo de escrever este texto com mil.
Felipe Fortuna
Texto originariamente publicado no Jornal do Brasil, Caderno Idéias & Livros, em 2 de agosto de 2008
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