O PANELAÇO

Jogar contra os argentinos, seja no pega-varetas, no futebol de tampinha, no resta um, na trilha, no ludo, na peteca, sempre nos é alarmante. Sempre. De um alarme sobrenatural. Sempre. Há quem o diga que prefere ser assaltado em plena luz do dia, passar anos no cativeiro, ver esqueletos de Contos da Cripta invadindo mercearias a assistir um empate – o que dizer em caso de uma derrota? – entre o nosso combinado nacional e a seleção cisplatina. Há quem o diga mais: prefere a mãe morta a assistir um exíguo e notável meio minuto da rivalidade Sul-Americana. Há quem o diga. E é certo, absolutamente certo. Sempre nos amedronta. Sempre... Assistir meio-minuto de Brasil e Argentina nos causa arrepio, estremecimento. Nos causa um infarto generalizado, um infarto nacional. E se nos causa tamanho pavor, imaginem aos nossos atletas, em campo, após tomar o primeiro gol, ou melhor dizendo, quando Lionel Messi pega na bola e nos esfrega seu futebol habanero como se nossas fisionomias tirolesas pudessem suportar o seu espetáculo saltimbanco. Imaginem...
Não faz muito tempo que os mineiros, numa pluviosidade acústica, aplaudiram o jovem jogador hermano. Não faz muito tempo que, não só os mineiros, mas o Brasil, em sua totalidade tropical, o Brasil, comungando de um grito cênico, rendeu-se às maravilhas do jovem futebol hermano. Não faz muito tempo. Lionel Messi foi ovacionado, foi adulado, amado, deram-lhe alpiste na boca em pleno território nacional, deram-lhe água no canudinho em pleno seio pátrio. E lá estava o Lionel desfilando, desfilando... E os brasileiros ovacionando, ovacionando... No dia seguinte, nossos jogadores inundavam as manchetes, rádios e programas esportivos de cáustico desapontamento. Por que aplaudir Lionel, por quê? E o nosso lateral esquerdo, Gilberto, não entendia. E o Ricardo Teixeira não entendia. E o nosso presidente não entendia. E o senado não entendia. E os deputados não entendiam. Porém, quem entendia era o camelô, o flanelinha, a tia da quitanda, a vendedora de butique, o auditório, o Lazaroto... Eles entendiam.
Certa vez, o Lazaroto me falou:
— No Brasil, o futebol deveria ser disciplina obrigatória e não tira-teima.  – E concluiu – O futebol brasileiro é vira-lata porque vive de história e estatística.
Não objetei, não objetei. Lazaroto estava certo: O futebol brasileiro é vira-lata porque vive de história e estatística. Deveria ser disciplina obrigatória no ensino fundamental e médio. Sim, deveria. E após a derrota da seleção para os argentinos, após a despedida do ouro olímpico no futebol masculino, fui me encontrar com o Lazaroto num boteco próximo de casa. Sou meio supersticioso, prefiro não conversar com amigos, namorada, familiares, o diabo, no horário de partida da seleção brasileira. Cuido de minhas superstições com uma xícara de café e solidão saariana, com uma xícara de café e isolamento de astronauta. Não há catástrofe que me faça sair deste transe, desta hipnose futebolística. Não há. A solidão compartilhada é neurastênica e matrimonial, não esportiva.
Mas, enfim... Terminado o jogo fui me encontrar com o Lazaroto. Cumprimentei-lhe, acendi um cigarro e disparei, fulminante:
— Minhas condolências...
Lazaroto me olhou, consentiu com a cabeça. Mistério.... Quisera gritar, imaginei-lhe gritando no mais profundo de sua alma. No entanto, murmurou:
— Quero que você me faça um favor... Um favor de irmão, pode ser?
Respondi:
— Depende, depende... Qual é o favor?
E ele, concluindo:
— Pelamor de Deus, me dê um tiro na cabeça! Depois dessa, perder pra argentino... Por favor... Um tiro, só um!
Expliquei-lhe que não era assim, que ele tinha filhos, esposa, um trabalho com carteira assinada. Expliquei-lhe que sua empresa iria ficar órfã de Papai Noel nas festas de final de ano. Expliquei. Meia hora depois, consolado, Lazaroto colocava as mãos na cabeça e dizia:
— Não era pra ser assim – repetindo – não era...
Justifiquei sua tristeza com o bom desempenho do Lionel Messi, a falta de chutes e as poucas oportunidades que o Brasil teve em campo. E nada. Nada! Lazaroto replicou:
— O Messi é um pinto, um pinto mal chocado! Só... Três a zero é time de várzea! O Maradona é jogador de várzea, a Argentina é uma seleção de várzea, o Messi é jogador de várzea! O Brasil tem que parar com o vira-latismo, só isso!
E foi só, bastou. Escutei mais um pouco de suas reclamações, apertei sua mão:
— Nós encontramos o caminho, tenha fé. – E despedindo-me – Não está na hora de derrubar impérios, enforcar czares, proclamar uma revolução, não está na hora...
Lazaroto retrucou:
— Fé, uma pinóia! Três a zero, meu amigo! Três a zero!
Lembrei da frase do Nelson Rodrigues, numa de suas crônicas esportivas: “A multidão é azul”. Pelo contrário, pelo contrário... A multidão é negra, ressentida e assassina. Mata e morre em nome de sarjetas.

Diego Ramires

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