ONDE ESTÁ WALY?

Esta minha foto será vista pelos olhos do invasor?
Como será vista esta minha foto pelos olhos do invasor?
Waly Salomão, “Self-Portrait”

Tiro partido de uma inteligente e sensível interpretação de Silviano Santiago sobre uma foto que flagra Waly Salomão (1943-2003). Seguro de estar diante de “uma visão do homem e de sua obra”, o crítico dividiu a foto ao meio, e nela percebeu “dois palcos”: num deles, atuava a “boca escancarada” de “um rosto mestiço, de traços excessivos”, tudo sintoma de um temperamento e de uma poesia transbordantes; no outro, “a mão argumentativa e o dedo indicador”, conjunto característico de quem está denunciando a persistência do tédio no lugar da arte, da rotina no lugar da poesia. Essa análise de Silviano Santiago foi publicada em resenha a Pescados Vivos (2004), quando Waly Salomão já estava morto. Por coincidência, o crítico esteve presente com o mesmo instrumento de corte tanto na estréia quanto na aparição póstuma do poeta baiano. Pois no ensaio “Os Abutres”, de 1972 (republicado em Uma Literatura nos Trópicos), demonstrou que Waly Salomão, com Me Segura qu'Eu Vou Dar um Troço (1972), estava afiliado ao método de composição anárquico do Oswald de Andrade de Memórias Sentimentais de João Miramar (1924); enquanto Gramiro de Matos, com Urubu-Rei (1972), “guarda parentesco maior com Macunaíma [1928]”, onde o indígena se sobrepõe ao marginal, e o selvagem ao urbano.

Não pretendo expor todas as conseqüências da interpretação acima descrita, muito menos discutir a hipótese de que “Waly sabia que poderia ter sido o sucessor de Drummond”, com a qual Silviano Santiago provoca sem querer justificar. O que me interessa, agora, é apossar-me dessa linha abstrata que divide a foto ao meio. Linha quente a cauterizar alguns dos mitos sobre a poesia de Waly Salomão, que devem sua sobrevivência a uma estratégia confusa do poeta (e ele reconhece, em “Persistência do Eu Romântico”, que “Poeta mente demais...”). No poema “Desejo & Ecolalia”, de Algaravias (1996), quando perguntado sobre o que gostaria de ser quando crescesse, o poeta responde: “– Poeta polifônico.” Inúmeras vezes, em todos os seus livros, Waly Salomão tentaria cumprir o autoproclamado destino – não raro com notas escatológicas ou sexuais, como no verso “Surubas de sensações truncadas”, de Tarifa de Embarque (2000). Mas o que se percebe, por fim, é a invencível constância de “dois palcos”, de dois pólos, de dois extremos que angustiam a trajetória do poeta.

Num canto da criação está o equilíbrio apolíneo, de todo rejeitado, porque sua harmonia está identificada à conformação e às forças conservadoras; no outro canto está a ação dionisíaca, desinibida e agitada, que o poeta quer trazer não apenas à obra que está escrevendo, mas à vida que vai levando. Ocorre que a dimensão dionisíaca, em sua poesia, nunca é puramente vibrante e espontânea, nunca é autônoma: está sempre em contraponto, como se houvesse uma força maior a seduzir ou medusar o poeta. “Não perder os pés, não entrar pro sanatório – criar condições pra que o delírio seja medida do universo”, escreve ele em Me Segura qu'Eu Vou Dar um Troço. O assunto homossexual, em sua poesia, nunca parece liberador ou celebrado de modo vital – ao contrário do que acontece, por exemplo, em Roberto Piva. A linha que divide ao meio permanece, e o poeta não consegue gozar as bacanais que imaginou: o outro lado ainda emite uma melodia encantadora.

Igual e robusta contradição se apresenta no poema “Lausperene”, palavra roubada à liturgia católica com a qual Waly Salomão exorciza algumas antologias da “atual poesia nacional” e prega o seu credo:

              Belo é quando o seco,
              rígido, severo
              esplende em flor.
              Seu nome: Cabral.
              Nome de descobridor.

       Os olhos duvidam do que acabaram de ler: o poeta, em versos breves, faz o elogio do nec plus ultra do método e do racionalismo em poesia; e concede beleza à severidade de quem sempre manifestou ojeriza à música. Como se não bastasse, o mesmo Algaravias estampa o poema “Hoje”, humoradamente dedicado ao poeta e diplomata Francisco Alvim (tão poeta e diplomata quanto João Cabral de Melo Neto):

              O que eu menos quero pro meu dia
              polidez, boas-maneiras. (...)
              Hoje só quero ritmo. (...)

              Está prescrito o protocolo da diplomacia.

       Veja-se bem: o contraditório, aqui, não é apenas apregoar o incompatível em estética ou em literatura; é também omitir a experiência diplomática como um sinal bem fundo do poeta pernambucano. Recorde-se, entre outros exemplos, a ironia contida em alguns versos de “Sobre o Sentar-/Estar-no-Mundo”, de A Educação pela Pedra (1966):

              por afetuoso e diplomata o estofado,
              os ferem nós debaixo, senão pregos,
              e mesmo a tábua-de-latrina lhes nega
              o abaulado amigo, as curvas de afeto.

        Chega-se assim à mais dolorosa linha que divide ao meio a poesia de Waly Salomão: a que deixa o poema num palco, e a letra de canção no outro. Muito ainda será escrito sobre os aspectos dessa distinção, sobretudo por excesso de amadorismo. Ao contrário do que se pensa, o poeta baiano seguramente abandonava o musical Orfeu e buscava acolhimento junto a... Apolo, o deus da poesia. Mais e mais se firmava em Waly Salomão a certeza de que o livro – e o poema literário – iriam conter o mel do melhor que estava produzindo e ainda produziria, não fosse a morte prematura: havia como que um ideal de abandonar o caos e a dispersão e organizar as palavras da tribo (Mallarmé em vez de Nietzsche). No afã criador, fazia questão de preservar um princípio: a letra antecedia a música, “numa espécie de altivez do poeta”. Nessa fase final, de diligente revisionismo, foi o poeta – e não algum crítico – quem estabeleceu a incontornável separação entre o poema e a letra de canção, até com algum exagero: em entrevista ao jornal Poesia Viva (número 24), chegou mesmo a declarar que a clássica “Vapor Barato” era uma canção com “letra sub-literata”. Seja como for, permanecerá forte a tensão de Waly Salomão, poeta que se preparava para ser, uma vez mais, diferente. Era exigente consigo e com o Brasil – e confundia ambos com um só lugar, o seu lugar, onde sempre pareceu difícil encontrá-lo por inteiro.

Felipe Fortuna

Texto publicado originariamente no Jornal do Brasil, Caderno Idéias & Livros, em 10 de maio de 2008.
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