ELEFANTES E GUEPARDOS
Texto em homenagem ao centenário de Machado de Assis
Venho sentindo nos últimos tempos, posso dizer-lhes com a franqueza da alma, pode rir-se também se quiser. Dado à estranheza e absurdo do sentimento. Mas percebo renitentemente que está em arrabaldes, no ar, na atmosfera um incomum processo, familiar até, de proximidade com o autor centenário Machado de Assis. Fico assim pairado, pois como ele morava no Cosme Velho. Era o bruxo do bairro. Eu que não sou bruxo nem nada, nem mágica para enganar criança faço, sou morador de Cosme de Farias. Moramos em bairros homônimos. Também isso não é lá grande coisa, mesmo porque os dois Cosmes eram distintos. Um era comerciante português de séculos atrás, o outro, esse mais próximo de mim, era advogado sem carta de Direito que proclamava justiça aos pobres. Não faço idéia como esse sentimento singular, misterioso e excêntrico vem iminentemente propagando-se de imediato e em princípio, acho eu, em mim mesmo.
Uma vez ao escrever um conto, não lembro qual, tive uma visão metafísica. Ou foi um sonho acordado. Ou foi uma viagem astral. Vi um homem barbudo, com um cavanhaque acentuado, muito parecido com o bruxo do Cosme Velho, dizendo a mim que eu estava caminhando sobre letras certas. Foi um enleio abstrativo. De imediato afirmo-lhe que não usei nada que me levasse a um barato lingüístico-literário-histórico. Então me lembrei dos elefantes que andam em bandos e na hora da morte trilha seu caminho sozinho para o desenlace atmosférico. Talvez o indivíduo que escreve, e que se descobre caminhando para escrever, aja assim. Claro, bem metafórica a comparação. De qualquer forma a figura do elefante bem que se parece com um escritor debruçado em livros na ânsia de absorver e em seguida escrever, criar. Eles nunca esquecem. Tanto um como o outro. Pode-se dizer, no entanto, que como em tudo que compõe a vida, o ato de traduzir o ser humano suscita também uma das mais febris dúvidas. Onde está a imaginação ou a vida? Princípio, meio e fim. Entre as infinitas centelhas de genialidade que assaltam Gabriel García Marquez, ele saiu-se com essa uma vez “... o puro prazer de narrar é talvez o estado humano que mais se parece à levitação”. E levitando provavelmente era que o bruxo do Cosme Velho deveria pender seus olhos em observações antropológicas para então dar vida (ou imaginação) à Capitu, por exemplo. Ora, ora, seria então um duelo infausto, como diria o próprio Machado em uma de suas cartas, o desafio diário e cotidiano de um observador de nuances de seus semelhantes. Retratá-las como um espelho de letras e ao final de tudo, levitar-se, como quer Gabo. Ou confessar de si mesmo, de si para si, ou para outros, como Gerana Damulakis acentuou em texto a respeito de Clarice Lispector. É essa proximidade que começa o texto, talvez familiar, ou por completar um ciclo de cem anos que nos deixa herda bruxarias lexicais, que seja, urge ser desnudado o homem do século XXI. Aparentemente igual, parecido, em paradoxo diferente, quiçá um outro tempo, mas com os mesmos anseios e dificuldades de século atrás. De épocas atrás. O homem é o mesmo desde Homero. Outros sofistas, uma inquisição “modernizada” e a mesma informação maniqueísta. Sendo que todos são bons e ruins ao mesmo tempo. Maniqueísmo em cada um de nós.
De mais a mais, sendo épocas distintas e distantes, havia e há a mesma evolução tecnológica, científica. Os mesmos discursos políticos, os mesmos dissabores sociais. Hoje um pouco mais intenso. No entanto, como diria outro ensaísta “a literatura não era pensada como manifestação autônoma, e sim tributária de uma discussão sobre o sentimento de nossa natureza, a originalidade da nação, o indianismo, enfim, a cor local”. Há originalidade nos elefantes de hoje. Não há cumplicidade entre os pares da pena, melhor, do word . Não posso, no entanto, sozinho, sentir a proximidade familiar de um bruxo centenário. Ou correr desarvorado para lugar nenhum. Correr sim, como um guepardo entre antílopes, mas coletivamente e em objetivo comum. Revelar o homem do século vinte e um.