RESPINGOS ROSIANOS
Colhidos enquanto relia o livro “Ave, Palavra”, e outros livros de João Guimarães Rosa.
–Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com o homem?
– Ser poeta é já estar no adiantado da velhice? A poesia é também um pedido de perdão?
– O esquecimento é voluntária covardia.
-– Mulher..., bonita como ninguém. Roubei do ruivo perfume de seus cabelos... um grande verde instantâneo.
– Amar é a gente querer abraçar um pássaro que voa.
– Leoana (a grega) me diz que, se gostasse de mim um pouco mais, ou um pouco menos, me amaldiçoaria. Amiga e amigo.
Um amigo de infância – o Tino (Faustino Homem de Melo) do Roldão –, disse-me outro dia que acredita na (metafórica?) pregação bíblica de que o homem foi feito do barro. “Se é na terra que ele é sepultado” (hoje nem todos), “é dela que ele renasce, como se fosse de uma semente igual às das relvas e das árvores”. Ele quis dizer que da terra nascem todos os seres do planeta, que a fonte de toda vida está nela: seca, úmida, sáfara, fértil, nos altos e baixos e escarpas de todos os continentes. Pode haver controvérsias neste ponto de exclamação entremeado de pontos de interrogações.Mas a hipótese se levanta, sucinta e provável.
Fiquei pensando no velho conceito da contínua transformação dos materiais da natureza, no seio da qual nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, de acordo com o reiterado aforismo cartesiano. Depois, lendo o texto “Terrae Vis”, do lírico livrinho “Ave, Palavra” de Guimarães Rosa, deparei com o trecho do “Divinatione”, de Cícero, onde ele assegura que o que animava a Pitonisa era “uma força emanada da terra”, acrescentando que “são várias as espécies de terras: as mortíferas, as pestilentas e as salubres: algumas engendram homens de espírito agudo, outras produzem seres estúpidos. Assim é o efeito dos diferentes climas, e também da disparidade dos eflúvios terrestres”.
Mais adiante, no mesmo texto, Rosa cita Keyserling: “Nas alturas das Cordilheiras, cujas jazidas minerais exalam ainda hoje emanações como as que antigamente metamorfosearam faunas e floras, tive consciência de minha própria mineralidade” As emanações telúricas, boas e más são na verdade inegáveis: mostram-se até com certo acinte em todos os lugares do mundo,impregnados, como nós de sentimentos e idéias deprimentes e instigantes, tristes e alegres, afrodisíacos e melancólicos. É do próprio subsolo (ele, Rosa, quem diz) que “vem ondas de harmonia e de inspiração espiritual”. Ler Guimarães Rosa é assim como ler os aromas e as ocupações da paisagem rural: “a simetria obscurada das coisas, as folhas que crescem como virtudes. Os verdes que vão e vêm, como relâmpagos tontos. A dança mágica do capim que a vaca vai comendo (...), o medo grande que de dia e de noite esvoaça, e que pousa na testa da rês como uma dor” (“Ave, Palavra”, pág. 115).
Mais respingos rosianos, de “Sagarana” (edit. José Olimpio, RJ, 1965):
–“Agora, Francolin,vá s'embora, que eu já estou com muita preguiça de você”.
–“...quando vejo aquele, fico logo amigo da minha faca.... Mas Silvino é medroso mole, está sempre em véspera de coisa nenhuma” (pág. 17).
–“Boi apaixonado, que desamana, vira fera.... Saudade em boi, eu acho que ainda dói mais do que na gente” (pág. 58).
De “Primeiras Estórias” (edit. Nova Fronteira, RJ, 1988):
– “A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração” (pág. 19).
– “O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo, se proclamara. Grugulegou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro raro, de céu e sanhaços, e ele completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre (pág. 8).
De “Manuelzão e Miguilin (edit. Nova fronteira, RJ, 1984):”A mesmo despois que a visonha daquilo tornou a se desaparecer, a cachorrinha não teve paz. Ela não podia olhar a luz da candeia, não queria de jeito nenhum virar a cara para a banda do fogo da fornalha”... (pág. 177).
– “tinha até chorado lágrimas, dessas que violão toca” pág. 188).
– “Compadre, vejo. Mais antes trabalhar domingo do que furtar segunda-feira. Mesmo digo. Aqui a gente olha a garapa ainda na cana” pág. 222).
Lázaro Barreto