A TERCEIRA MARGEM DA VIDA
“A terceira margem do rio” é um continho com todo um mundo dentro. Qual seria a sua gênese? Guimarães Rosa conta-a em uma crônica. Como, de onde teria surgido essa idéia estranha? De contos populares, lendas, crendices? Algum maluco do sertão teria algum dia realizado uma meia façanha dessas, meia apenas, de tão inverossímil?
G. Rosa conta em sua crônica a história de um viajante incansável, que veio da Holanda ao Rio de Janeiro, do Rio ao Recife, e à Alemanha, à Inglaterra, sempre a um porto diferente, sem aportar em nenhum. Estava sempre em viagem. Estava sempre na terceira margem.
Era o tempo em que o mundo vinha abaixo, nos anos da 2ª Guerra Mundial, tempo de perigo, de espionagens, de muita gente vivendo uma vida secreta. Mesmo G. Rosa e sua mulher Ara viviam vidas secretas, paralelas à sua existência burocrática de diplomatas, conseguindo papéis para milhares de judeus escaparem do extermínio nazista. Os homens matavam e morriam, ninguém confiava em ninguém, viver era perigoso. Não é assim à toa que G. Rosa escreve essa frase – “Viver é perigoso” – em seu monumental “Grande Sertão: Veredas”, composto nessa época.
E, enquanto isso, enquanto o mundo tremia em suas bases, um homem comum, aparentemente sem quê nem porquê, inventa de realizar uma idéia incomum: não morar em lugar nenhum. Estava sempre em viagem. Sempre na terceira margem.
Era uma história – G. Rosa inventa de escrever “estória”, tão vulgarizada, sem sentido, sem eira nem beira, estava a História. Era uma história extraordinária. Bastava escrevê-la com engenho e arte, uns quantos personagens acessórios, umas quantas cenas acessórias, uns contrapesos aqui e ali, para dar peso ao protagonista – que era um homem comum, o seu tanto sem graça.
G. Rosa já tinha passado pela experiência de escrever um conto que vai se alongando, alongando, até chegar a umas seiscentas páginas. Foi assim com “Grande Sertão: Veredas”. Era um conto, verdade que um conto longo como os de “Corpo de Baile”, que estava escrevendo nessa época, de umas setenta a cem páginas cada um. Mas o rio era baldo – o narrador Riobaldo deixou extravasar suas águas, que eram tantas, e o conto ficou daquele tamanhão.
G. Rosa está escrevendo as “Primeiras estórias” – primeiras mesmo, não mais o caudal de águas em ebulição dos contões anteriores, mas agora histórias curtas, fábulas de umas três a seis páginas. Está mais contido e está mais artista. (O excepcional contista mexicano Juan Rulfo é seu amigo então). Acabaram-se os tempos difíceis cheirando a pólvora e a morte da 2ª Guerra, quando não se tinha tempo para ser breve, para se conseguir a síntese que uma obra de arte exige – condensar a realidade, até que dela só exista a essência.
É assim que, de alma leve, descansado, G. Rosa situa a sua história, como não podia deixar de ser, nas suas Minas Gerais. O seu personagem é um caboclo simples, rude, tosco, incapaz de uma idéia fora do comum. O narrador é seu filho, que não acredita na esquisitice do pai, esquisitice mas bem planejada, palma o palmo: conta como vai entalhando o barco em madeira de lei, forte para durar muitíssimos anos, sem falar com ninguém, até o dia em que se despede da família, ainda sem nenhuma explicação, nenhuma palavra. Deita um meio carinho no filho, quase uma bênção. A mulher deita-lhe uma quase maldição, que, se quer ir, que vá para sempre, não volte nunca mais.
O homem vai para não voltar nunca mais, mas também não vai para sempre: está ali à frente, dentro do rio, sem ter ido para lugar nenhum. O filho, menino, torna-se homem feito e feio como o pai: sempre à margem do rio comunicando-se à sua maneira, até arremedando o jeito, as feições, com aquela assombração que não está nesta nem na outra margem do rio, presente e ausente a um tempo.
É a mesma história da crônica dos tempos da guerra, em que o personagem comum também, sem invencionices também, fugia da guerra e da vida impossível, não estando em lugar nenhum. Numa terceira margem – que é também nenhures.
(Crônica de 27 de junho, dia do centenário de nascimento de G. Rosa.)
José Carlos Brandão