Meu encontro com a escritora *

Conheci Sartre e Simone de Beauvoir num almoço que o editor Barros Martins ofereceu ao casal, em 1960 . Difícil descrever minha emoção ao ver os dois mitos assim tão próximos, sentados ali ao lado – ele, amarfanhado e feio mas de uma feiura rara, envolvente, a sedução na feiura. Cachimbo aceso. Acesos os grandes olhos saltados, olhos azuis de aquário com veiazinhas vermelhas, não admira nada que durante algum tempo se visse perseguido por lagostas quando das suas experiências com alucinógenos. Ela, de traços delicados que ainda guardavam umadiscreta beleza da juventude, cabeça pequena de aristocrata, corpo atarracado de camponesa. Mãos fortes e olhar tão intenso que recuei um pouco quando ela firmou o olhar em mim e começou com suas perguntas sobre a condição da mulher no Brasil. Essas perguntas prosseguiram nos contatos seguintes que tivemos, era inesgotável sua curiosidade. Interessou-se muito pela ditadura de Vargas, como os jovens reagiram? E como o país, ou melhor, como a mentalidade brasileira interferiu no processo da minha profissão de escritora?
Respondi-lhe que, no início, a interferência foi negativa: a imensa carga de convenções cristalizadas na época, me abafara demais, como abafara as jovens de minha geração, éramos tímidas: ousar o quê diante do inexistente mercado de trabalho para a mulher? A libertação modestíssima só foi facilitada durante as extraordinárias alterações pelas quais passou o País desde a minha adolescência (quando comecei a escrever) até a arrancada principal coincidindo com a estimulante ebulição notadamente a partir do suicídio de Vargas: estava então eu saindo da Faculdadede Direito onde participara de passeatas de lenço amarrado na boca. Vivo ainda o som das patas de cavalo. E o borbulho de sangue no peito do jovem ferido de morte. Se me libertei mais do que o próprio País, foi simplesmente porque a libertação individual era mais fácil. Um dia o País tiraria do episódio histórico todas as conseqüências. Quis saber em que medida a modernização da cultura teria contribuído para a valorização da mulher no seu ofício. Hoje, teria lhe dado uma resposta através de uma idéia de Paulo Emílio Salles Gomes e que parte do princípio de que no nosso século a modernização em geral só modernizou a burguesia. Como membros de uma corporação que precisa procurar outros recursos de subsistência, além dos tão sumáriosproporcionados por uma atividade como a literária, por exemplo, chegara a vez das escritoras reivindicarem o difícil reconhecimento no campo da palavra escrita.
Simone de Beauvoir ouvia com a maior atenção mas sem esconder a impaciência se alguém ou eu mesma, inadvertidamente, trazia algum aspecto mais folclórico que o brasileiro gosta tanto de mostrar ao turista: pedia apenas a face obscura, sem carnaval e sem futebol. Durante alguns dias o casal desapareceu do meu horizonte, cumprindo um programa abarrotado de compromissos demasiado longos para a curta estada em S.Paulo: conferências, entrevistas, debates com estudantes. Visita à Faculdade de Araraquara, queriam encontros com jovens também do interior. Visita àfazenda dos Mesquita, em Louveira, queriam conhecer uma propriedade rural. Nos intervalos, as pequenas reuniões sociais que pareciam abominar. Mais museus. Butantã... Quando pensava que não voltaria a vê-los, ela telefonou, poderíamos marcar um jantar? Helena Silveira acabou entrando no esquema e assim fomos a um pequeno restaurante italiano, tinha dito quegostava de massas: três mulheres em torno de uma mesa, tomando vinho e falando dos seus problemas e perplexidades. Ela usava um turbante preto, mas na nesga que o pano descobria, podia-se ver seus cabelos castanhos, com alguns fios brancos. Os olhos inquietantes brilhavam à luz das velas. Brilhava também uma borboleta prateada que Helena trazia presa na gola do casaco.
Nas vésperas da partida, combinamos um encontro na livraria, queria me oferecer seu último livro publicado no Brasil em tradução de Sérgio Milliet: Todos os homens são mortais . Mostrou interesse em meu texto. Respondi-lhe que em francês tinha apenas original e cópia de um romance que um escritor canadense, padre Charbonneau, tinha traduzido: Ciranda de Pedra . Ela insistiu, ficaria com a cópia. Enfiei o maçarote dentro de um envelope e enquanto me dirigia ao ponto marcado, já estava arrependida do oferecimento feito, que bobagem, ela quisera ser apenas gentil pedindo um livro que naturalmente nem ia ler, delicadezas devisitantes que sobem no avião e esquecem. Deixaria o pacote no hotel ou no aeroporto, como William Faulkner já tinha feito: no famoso encontro de escritores internacionais realizado na nossa Biblioteca, poetas e prosadores sofregamente levaram-lhe as obras. Que no seu doce pilequinho, ele ia aceitando muito afável, o digno sorriso sulista embutido no bigode. Pra deixar tudo numa velha sacola que esqueceu no apartamento que ocupava no HotelEsplanada (ainda existia o Esplanada), os livros explodindo pelo zíper, toda a brilhante produção nacional da década de cinqüenta. E de outras décadas. Ao cruzar a Praça da República, me lembrei bem humorada desse episódio e cheguei a me aproximar de um banco para ali largar o pacote, impressionante como o pensamento pesa, principalmente na bagagem aérea. Arrisquei, sou jogadora. Imaginar o livro num balcão de aeroporto ainda era menos deprimente do que imaginá-lo no banco úmido de garoa. Nem quinze dias depois, recebi a carta no curioso papel quadriculado que me fez recuar até os antigos cadernos de aritmética da minha infância, cada número dentro do seu quadradinho. Mas ali, a letra intratável, livre, desobedecia à convenção das fronteiras. Atenta e atenciosa Simone de Beauvoir. Não só lera o livro como se apressara em alegrar o coração de uma escritora brasileira que passou esse dia levitando, em estado de graça.
Dez anos mais tarde, visitei-a no seu pequeno apartamento em Paris, no Odeon: ela se atrasara (tinha saído) e fiquei desejando que se atrasasse mais para que eu pudesse ver devagar todo aquele seu mundo aconchegante de objetos, quadros, retratos – memória dos países que Sartre e ela tinham percorrido. Presença do amor. Da luta. Do sofrimento. “O passado é umaroupa que não nos serve mais”, alguém escreveu mas eis uma roupa que jamais poderia ser posta de lado. Quando eu examinava uma gravura chinesa ela chegou. Ofereceu-me conhaque, desculpando-se da vaga desordem em torno, a empregada não tinha aparecido, vivia só. Solidão? Sim, uma certa solidão embora Sartre morasse um quarteirão adiante, viam-se quase diariamente: separados mas juntos. Fomos almoçar num bistrô do bairro, era outono e a folhagem das grandes árvores estava esbraseada. Achei-a mais magra. Mais envelhecida no casaco de couro e botas da cor da folhagem. Voltou aos seus temas preferidos, o movimento feminista. Política. Literatura. E de repente, a pergunta incisiva: “Você tem medo de envelhecer?”
Comecei a ramificar nas minhas curvas mas ela queria a linha reta. Tocou com firmeza na minha mão: “Então está com medo.”Não pude deixar de sorrir: ali estava a pensadora tão lúcida, tão racionalista, a ensaista que esgotara tão terrivelmente num alentado ensaio todo o problema da velhice e ainda preocupada com a idade da decadência, vulnerável como uma dona de casa que se procura no espelho e se assusta. Num dos seus belosromances, a personagem em plena l'âge de discrétion também se encolhera como um coelho: “Tenho medo. E não posso chamar ninguém para me socorrer. Tenho medo.” Fiquei olhando o vinho vermelho no copo transparente. O pão dourado na cesta.
Setenta anos? Setenta anos. Em toda sua obra ausente de Deus, a mesma preocupação constante com a fragilidade da condição humana, a mesma marca da insegurança, do medo. O antigo espanto diante da velhice e da finitude e a busca desesperada de uma resposta que pudesse romper o mistério. Evidente sua obsessão – comum a todo artista – de permanência, de duração. E a tranqüila filosofia estruturada na certeza de que a imortalidade seria a morte da vida. Só a idéia da morte, última chave da última porta – só essa idéia, apesar de tudo, torna nossa existência mais feliz.

Lygia Fagundes Telles **

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* Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, 8 de janeiro de 1978.
** Escritora, seu último livro publicado é A noite escura e mais eu – contos . Rio de Janeiro, 1995. Cadernos pagu (12) 1999: pp.59-63 .
Fonte: http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos//Pagu/1999(12)/F_Telles.pdf

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