"ULISSES" - UM MONÓLOGO
(Fragmento)

               (...)
               Eu tinha um velho tio que pensava de modo retilíneo. Um dia ele me parou na rua e me perguntou: "Sabe como é que o diabo tortura as almas no inferno?" Como eu dissesse que não sabia, ele prosseguiu: "Ele as deixa esperando". Assim falando, seguiu seu caminho. Esta observação voltou-me a memória quando percorri Ulisses pela primeira vez. Cada frase contém uma expectativa que não se concretiza; por fim, por mera resignação, o leitor já nem espera mais nada e, para seu reiterado espanto, percebe gradativamente que, de fato, acertou. Na verdade, nada acontece, nada resulta daí, e, contudo, uma secreta expectativa em antagonismo com uma resignação sem esperança, arrasta-nos página por página. As 735 páginas que nada contém não são, de modo algum, páginas em branco mas, pelo contrário, densamente impressas. A pessoa lê, lê e relê e pensa que compreende o que está lendo. Ocasionalmente depara-nos, através de um respiradouro, com uma frase nova — mas, uma vez tingindo o grau certo de dedicação, acostumamo-nos com tudo. Assim também eu li, com o desespero em meu coração, até a página 135, adormecendo por duas vezes. A versatilidade incrível do estilo de JOYCE tem um efeito monótono e hipinótico. Nada vem ao encontro do leitor, tudo se afasta dele, deixanodo-o para atrás, olhando embasbacado. E vai vivendo, esquivando-se, nada satisfeito consigo mesmo, mas irônico, sarcástico, venenoso, desdenhoso, triste, desesperado, amargo, e assim, arrastaria a simpatia do leitor de modo pernicioso, se um sono solícito não interrompesse bondosamente esse desperdício de energia. Ao chegar à página 135, mergulhei definitivamente num sono profundo, isto após diversas tentativas heróicas para aproximar-me do livro, ou como lhe diz normalmente "fazer-lhe justiça". Quando despertei depois de um longo tempo, as minhas idéias haviam-se clareado a ponto de eu começar a ler o livro de trás para diante. Este método demonstrou ser tão bom quanto o comum, quer dizer, o livro pode também ser lido de trás para diante, pois ele não tem parte de trás, nem de frente, nem de cima e nem de baixo. Tudo já podia ter sido assim ou vir a ser no futuro. Pode-se ler uma conversa com igual prazer, de trás para diante, pois não se perde nenhum ponto importante. A conversa, como um todo, não tem nenhum ponto principal, mas cada sentença é um ponto alto. Também pode-se parar no meio da frase — a primeira parte tem razão suficiente para subsistir por si só, ou, ao menos, parece ter. O livro tem a característica de um verme cortado ao meio, que desenvolve uma cauda para a parte que ficou com a cabeça, e uma cabeça para a parte onde ficou a cauda.
               Essa incrível e sinistra qualidade do espírito de JOYCE demonstra que sua obra pertence à classe dos animais de sangue frio e à dos vermes em especial; estes, se tivessem capacidade literária, usariam, na falta de um cérebro, o sistema nervoso simpático. Presumo que em relação a JOYCE exista algo parecido, portanto um modo de pensar visceral, por meio da ampla repressão da atividade cerebral que, no caso dele, está restrita substancialmente a percepção. A atividade de JOYCE no plano sensorial deve ser admirada sem restrições: o que ele vê, ouve, degusta, cheira e apalpa, tanto interna como externamente, e o modo como o faz, é realmente assombroso. Normalmente, o comum dos mortais, sendo especialista em esferas sensoriais ou de percepção, restringe-se ao externo ou ao interno. JOYCE conhece ambos. Guirlandas de associações subjetivas entrelaçam-se com figuras objetivas de uma rua de Dublin. Objetivo e subjetivo, externo e interno interligam-se mútua e constantemente de tal modo que, apesar da clareza da imagem individual, persiste no final a dúvida se se trata de uma lombriga física ou transcendental. A lombriga é, em si, um cosmo vivo, possuindo uma fabulosa fecundidade; na minha opinião, uma imagem nada bonita, mas não de todo imprópria para JOYCE. É bem verdade que a lombriga não pode produzir nada além de novas lombrigas, mas isto ela consegue com uma abundância inesgotável. O livro de JOYCE poderia ter 1.470 páginas ou até o múltiplo disto, e a infinidade não teria diminuído em uma gota sequer e ele ainda não teria dito o essencial. Mas será que JOYCE quer realmente dizer algo essencial? Na opinião de OSCAR WILDE a obra de arte é algo completamente inútil. Em nossos dias até o autosatisfeito culturalmente nada teria a objetar; contudo, o seu íntimo espera algo "essencial" da obra de arte. Mas onde se encontra isso em JOYCE? Por quê ele não o diz?
              (...) A autosatisfação cultural está tão arraigada em meu sangue que pressuponho ingenuamente que um livro queira dizer-me algo e queira ser compreendido — evidentemente um antropormofismo mitlógico projetado no objeto, o livro! Sobretudo um livro sobre o qual não se pode ter uma opinião — essência de uma aborrecida derrota do leitor inteligente, que, afinal, também não... (para usar o estilo sugestivo de JOYCE). (...) JOYCE despertou minha má vontade. (Nunca se deve colocar o leitor diante da própria burrice — Ulisses, no entanto fez exatamente isso).
              Um psicoterapeuta como eu está sempre praticando terapia até em sim mesmo... Irritação significa: "Você ainda não enxergou o que existe atrás disto". Portanto, acompanhemos nosso aborrecimento e coloquemos diante de nós o que inspira o nosso mau humor: é este solipsismo, esta despreocupação, esta falta de consideração em relação ao público leitor, culto e inteligente, em sua tentativa benevolente, bondosa e justa de querer comprrender — é tudo isto que me atca os nervos.

Carl Gustav Jung

Do livro: O espírito na arte e na ciência (fls. 95 a 98), Ed. Vozes, 2ª ed. 1987, Petrópolis/RJ

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