Ray Bradbury 1920-2012 (Postado em 8.6.2012)
Ray Bradbury escrevia bonito, e muitos leitores (e críticos) da FC dos anos 1950 se impacientavam ao perceber que ao invés de avançarem rapidamente pelo livro, virando página por página, estavam se detendo para reler e saborear um parágrafo especialmente rico em nuances de significado, inversões sintáticas, visualizações inesperadas, forte apelo sensorial. Ele foi um dos primeiros estilistas da FC nos anos 1950, juntamente com Theodore Sturgeon, Cordwainer Smith e outros que não tiveram medo de escrever FC numa linguagem “poética”, esse terrível adjetivo que para muito escritor é o “beijo da morte”.
O estilo poético proporcionou a Bradbury, que começara sua carreira nas revistas mais baratas de “pulp fiction”, a chance de publicar nas revistas chiques dos EUA, revistas que pagavam bem e serviam como vitrine diante da “intelligentzia” literária. Com isto ele abriu duas frentes de leitores, simultâneas – os intelectuais que liam “Collier's” ou “The Saturday Evening Post”, e a rapaziada da FC que lia pulp magazines como “Planet Stories” e “Astounding Science Fiction”. Manter e unir esses dois públicos foi uma das
muitas façanhas desse autor que sempre soube assegurar a ampliação e manutenção do seu contingente de leitores: foi roteirista de Hollywood (“Moby Dick”, de John Huston), teve dezenas de histórias adaptadas para a TV e os quadrinhos, e escreveu numerosas peças de teatro.
Quando Mikhail Gorbachev visitou os EUA e foi recebido por Reagan na Casa Branca, os únicos convidados cujo nome ele indicou pessoalmente foram Ray Bradbury e Isaac Asimov, com a explicação: “São os autores norte-americanos mais conhecidos e mais amados na URSS, e os favoritos da minha filha”. A FC tem esse espírito eliminador de fronteiras geográficas e políticas.
Assim como Asimov, Bradbury não dirigia automóvel e tinha medo de avião. Melhor para nós, porque cada vez que ele ficava em casa escrevia um conto como “O pedestre”, “Um som de trovão”, “Encontro noturno”, “O anão”, “A terceira expedição”... Como escritor de FC, Bradbury sempre teve uma atitude crítica contra a tecnologia, a mecanização, a cultura de massas. Seu romance mais famoso, “Fahrenheit 451”, é um terrível panfleto contra uma sociedade dominada pela propaganda e por “reality shows”. “As crônicas marcianas” não são a história de um triunfo, mas de uma colonização brutal, em que os terrestres destroem impiedosamente a civilização marciana. Seu temperamento sentia-se talvez mais à vontade na fantasia tenebrosa (“dark fantasy”) onde ele foi o mestre de uma mistura peculiar entre o lirismo, o fantástico, o terror e o humor.
Ariano Suassuna e Ray Bradbury (Postado em 1.4.2007)
Não é brincadeira minha. Existe algo em comum entre o paraibano nascido em 1927 e o norte-americano nascido em 1920. Ambos criaram uma paisagem espaço-temporal própria que se identifica com sua própria infância, e ambientaram nela a parte mais emotiva e autobiográfica de sua obra. Nenhum dos dois é um saudosista que viva do Passado; ambos, apesar da idade, são hoje indivíduos ativos, lúcidos, e mergulhados nas lutas culturais e políticas do momento presente, em seus respectivos países. Mas na obra de ambos a infância e a memória têm uma importância crucial.
Bradbury passou a infância, nos anos da Grande Depressão, na cidadezinha em que nasceu: Waukegan (Illinois), um vilarejo do Meio Oeste. Quando tinha 14 anos seus pais se mudaram para Los Angeles. Ali ele se tornou escritor profissional e roteirista de Hollywood, mas em seus livros retornaria repetidamente para o ambiente de sua infância, onde situou alguns dos seus livros mais poéticos e imaginativos, como O País de Outubro (1955), O Vinho da Alegria (1957) e Algo sinistro vem por aí (1962). O ambiente da cidadezinha do interior é magicamente reconstituído e poetizado. Lá se misturam a excitação pelas descobertas da adolescência e o terror ao entrar em contato com os perigos do mundo. É de se notar a importância que tem na obra de Bradbury o “carnival”, que não é carnaval: é uma instituição tipicamente norte americana, uma mistura de circo e de parque-de-diversões ambulante, cheio de brinquedos, prodígios e criaturas extraordinárias.
Ariano passou sua infância em Taperoá, até se mudar para Recife, onde mora. Foi numa Taperoá mítica, poetizada, que ele situou suas obras mais importantes, entre elas A Pedra do Reino. O Circo tem uma grande importância na formação da visão-do-mundo do autor e de seus personagens, como Quaderna. E nos folhetins em que a infância deste é recontada (O Rei Degolado e As Infâncias de Quaderna), a descoberta das belezas da vida (as caçadas, os cantadores, os folhetos de cordel, o teatro de mamulengos, as cavalhadas sertanejas) se dá juntamente com a descoberta da violência humana (as guerras políticas da Paraíba) e da tragédia cósmica (a Morte Caetana, mulher que se transfigura em Onça quando chega a hora de arrebatar as vidas humanas).
O romance mais importante de Bradbury, Fahrenheit 451 (1953) é, involuntariamente, uma homenagem ao Romanceiro Popular Nordestino, que Ariano sempre defendeu e sempre cultivou. Numa sociedade totalitária do futuro, onde a TV é obrigatória, os bombeiros são encarregados de queimar todos os livros. Os subversivos desse tempo são indivíduos que, para não serem presos por possuirem esses objetos proibidos, resolvem decorá-los, preservá-los na memória. (Nesse mundo, talvez Bradbury quisesse decorar Moby Dick e Ariano Os Sertões.) Não pode haver homenagem mais poética aos poetas da Tradição, ao Romanceiro, às cantigas antigas, às Literaturas da Voz.
Braulio Tavares
Fonte: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/
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