O QUE ME ANGUSTIA NA TRAGÉDIA DE SANTA MARIA 

Chorei ao ler esse texto comovente publicado neste link :  http://marcoaureliofarma.blogspot.com.br/2013/01/um-sentimento-sobre-tragedia-de-santa.html ,   e indicado por uma grande amiga. Mas ele me fez pensar também, e muito. Pergunto-me se realmente a morte de tantos e tantas jovens nã o terá sido em vão, não terá sido como sempre continua sendo... Coloco-me, como todo mundo, no lugar de todos que estão sofrendo. Identifico-me, como meus vizinhos/as, como meus amigos/as, como as pessoas que falam nas ruas, na net e na TV, e como você que me lê, com a dor e angústia dos pais, irmãos, amigos/as, amores e, principalmente , das mães dessas crianças ceifadas tão cedo, numa morte completamente absurda, desnecessária, sem sentido, aterrorizante... 

Entretanto, coloco-me, antes e acima de tudo, no lugar dos jovens e das jovens que se foram. Posso até ouvir uma delas aqui, bem perto do meu coração, chorando e dizendo: 

“Eu não sei o que aconteceu! O que está acontecendo ? Onde  estou ? Eu entrei em pânico, todo mundo estava em pânico, eu saí correndo, a fumaça me asfixiava.Por sorte, não sei como, me vi lá fora! Respirei aliviada, mas estava desesperada, ouvindo os gritos de meus amigos lá dentro. Eu não sabia o que fazer, tentei voltar, mas não consegui entrar. Procurei meu celular, mas ele tinha sumido. Eu tremia e chorava sem parar, não conseguia raciocinar, queria minha mãe, queria minha casa! Então corri pra pegar um ônibus, pra voltar pra casa, mas não passava nenhum. Fui andando mesmo. Cheguei em casa atordoada e gritava “Mãe! Mãe!” Mas ela não ouviu. Fui até seu quarto e não estava. Meu pai também não. Não tinha ninguém em casa. Nisso ouvi vozes e choro no apartamento vizinho. Fui até lá. Minha mãe e meu irmão estavam lá com vários vizinhos, todo mundo chorando. Corri para ela. ‘Mãe tá tudo bem, eu to aqui, eu consegui me salvar!' Mas ela... ela não me ouviu e nem me viu! Gelei apavorada. Comecei a tremer de novo sem parar. Tentei abraçá-la e foi como abraçar o ar! Tentei falar com os outros, mas também ninguém me ouvia nem me via! O que está acontecendo ? Eu não entendo! Eu não me salvei ? Eu estou morta ? Por favor, me ajudem! Eu estou presa nesse pesadelo! Estou andando pra lá e pra cá sem parar. Ninguem me vê, ninguém me ouve! Não sei o que fazer! Não sei o que pensar! 

Acabo de ver meu corpo, agorinha, junto a tantos outros, mas eu estou aqui! Tem um monte de autoridades. Um monte de gente chorando. Tvs falando da tragédia o tempo todo. Parece que o país inteiro está comovido, está chorando por mim e por todos os outros corpos. Gente que não acaba mais tentando consolar e ajudar minha família. Mas e eu ? Socorro! Por favor me ajudem! Me ajudem! Eu não sei o que fazer! Eu só fui encontrar meu namorado na boate, eu não sei como é morrer! Eu não sei o que fazer quando se morre! Ninguém nunca me falou! Colocaram um número nos nossos corpos. Mas eu não sou um número. Eu não sou apenas mais uma entre mais de 200 de uma morte coletiva! Eu sou um indivíduo! Eu sou uma pessoa! Eu tenho um nome! Eu tenho sentimentos! Eu estou morrendo de medo! Isso não pode estar acontecendo! Eu tenho uma vida ainda pra viver! Eu tenho tantos sonhos, tantos planos! Eu quero ajudar a melhorar o mundo! Por favor, me tirem desse pesadelo, por favor! Alguém me ajude!”


Ninguém a ouve. Ninguém a vê. Nem a ela nem aos outros. É atroz uma morte dessas! Jovens totalmente despreparados, cuja maioria provavelmente nunca teve familiaridade com o mundo espiritual, nem imaginou que, de uma hora para outra, sem mais nem menos, estaria num lugar e, de repente, deixaria de existir neste mundo. Jovens que só foram se divertir, que dançavam, bebiam, jogavam conversa fora, pensavam em namorados/as, faculdades, coisas engraçadas e ridículas, ser aceitos por seus pares de qualquer maneira, como se tornar mais interessante, aquele game chocante em que conseguira maior pontuação que todos os outros, aquela festa que foi de arrasar, aquele desafeto que não pára de encher, o emprego que precisa encontrar, o último episódio do big brother, as últimas fofocas, etc, etc, etc. E agora estão em choque, como que presos do outro lado de uma parede invisível, ainda muito ligados a esta dimensão, porque foi morte repentina demais, porque não conseguem imaginar outro mundo... Há uma coisa que podemos fazer por eles, além de chorar, uma única coisa que pode ajudá-los a sair de sua prisão momentânea e aterrorizante: a oração. Não uma oração qualquer. Mas com a força de todo amor que pudermos enviar e de toda nossa mais sincera súplica para que eles consigam acalmar-se e enxergar os anjos de Deus ao seu lado.

E há uma outra coisa que podemos fazer por eles/as, para que realmente não tenha sido em vão todo esse terror: olharmos e cuidarmos dos outros/as jovens e crianças que ainda estão aqui. Os jornais disseram que a Tragédia de Santa Maria foi a quinta maior do Brasil. Grande e deslavada mentira! Só de tráfico de crianças e jovens para a prostituição e escravidão, temos mais de 200 rotas nesse nosso país! Rotas ativas e produtivas! Sim, por coincidência, praticamente o numero de mortos de Santa Maria. E nessas rotas são feitos de mortos vivos milhões de crianças e jovens diariamente há anos e anos e anos! E ninguém faz o que deve! Ninguem resolve isso! Entra governo sai governo, continua a mesma coisa! Aliás, só piora! Existe tragédia pior do que essa? Vou repetir: é diária. Talvez se fosse televisionada e monitorada 24 horas por dia pela mídia, pelo menos por um ano, de tempos em tempos, e acordando nossa cegueira, seria reduzida pela metade quem sabe... Também é diária a tragédia de milhares de crianças e jovens morrendo para as drogas, e para diversos outros tráficos e violências das ruas, mas parece que já estamos tão acostumados com isso, que não nos causa mais nada, não nos sensibiliza, não nos desestabiliza, é como se não tivesse mesmo jeito nem solução, como se esses “deserdados da sorte” não tivessem mesmo direito de existir ou de viver dignamente. Não sei qual é a pior tragédia, a deles/as ou a da insensibilidade que nos devora cada vez mais, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

E há mais, muito mais. Poderíamos começar a prevenir tragédias, ao invés de só nos comovermos e nos movermos e descabelarmos depois que elas acontecem, ainda mais tragédias tão desnecessárias como as de Santa Maria! É simplesmente absurdo, é simplesmente inacreditável o descaso desse país, por exemplo, com a fiscalização e punição de boates que tratam os jovens como sardinhas em lata, belas e idiotas iscas para seu lucro a todo custo, o que é o caso da maioria desses lugares destinados aos jovens no Brasil. Já era na minha adolescência, e não vi mudança alguma, a não ser pra pior. O mesmo podemos dizer para a fiscalização e punição de quase tudo, do transito á venda de bebidas, armas e drogas a qualquer criança de 10 anos. Mas não podemos parar apenas aí, em nossas responsabilidades coletivas e sociais, há que se olhar para os nossos exemplos e nossas responsabilidades como pais, mães, educadores/as, também. Quando daremos exemplos melhores aos nossos/as jovens ? Não adianta dizermos para não beberem e fumarem, se nós bebemos e fumamos. Não adianta dizermos para nos ouvirem, se nós nunca os ouvimos. Não adianta querermos que sejam íntegros, equilibrados, com certo bom senso, profundidade, senso crítico e de bem comum, solidariedade, sensibilidade, força e coragem emocional e espiritual, que os impeçam de caírem em armadilhas e manipulações insidiosas, e que os ajudem a viver o melhor possível, a construir um mundo bom para todos/as, e até a enfrentar a morte, também o melhor possível, quando chegar a hora, se nós não cultivamos nada disso em nós mesmos, e, portanto, nem conseguimos passar o mínimo disso pra eles/as. E óbvio que também não adianta querermos que não se transformem em monstrinhos egoístas ou superficiais, ou que não morram em mortes estúpidas como as de Santa Maria, se, além de não lhes darmos exemplos de valores melhores, ainda por cima, deixamos que façam o que bem entendem, nunca lhes dizemos “não” quando precisam, dizemos sempre “sim” querendo bancar os bonzinhos ou sei lá o que, e nem sequer nos damos ao trabalho de verificar que ambientes nossos filhos e filhas frequentam após nosso lindo “sim”. Mesmo quando já são “de maior” e até já vivem em republicas, etc, estar em contato, manter o interesse por eles/as, querer saber, sim, de suas vidas e o que andam fazendo com elas, e ir até eles/as se vemos que estão precisando, que estão, por exemplo, em drogas ou em caminhos de autodestruição, é o mínimo que poderíamos fazer por nossos jovens, que dizemos amar, mas pelos quais, por vezes, só lembramos de chorar quando já se foram.

Não, eu realmente não sei até que ponto a tragédia de Santa Maria não terá sido em vão. Não sei se terá algum efeito realmente duradouro, ou se será mais uma tragédia que comove e causa reboliço, principalmente no momento em que acontece e enquanto a mídia não a esquece, mas depois não causa mudança real nenhuma em quase nada. E a vida, e o país, segue adiante, igualzinho, como antes, apesar dos discursos e promessas momentâneas em contrário. E é isto o que mais me angustia. Sinceramente espero que desta vez seja diferente, que desta vez a morte de tantos e tantas jovens — que não são apenas um grupo coletivo de seres abstratos, mas são gente como nós, cada um/a com seu nome, com sua historia, família, personalidade, beleza, sonhos, dons únicos — não tenha sido em vão e não seja apenas mais um espetáculo horrendo que transforma suas vítimas em meros números, os quais por um momento passageiro nos fazem chorar e, logo em seguida, apenas engrossam as estatísticas da nossa desumanidade.

Gisele De Marie

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