A "ABOLIÇÃO"
Há mais de um século, uma princesa de nome Isabel e de inúmeros outros nomes – seis para ser mais exato – abolia a escravidão no Brasil. Hoje, sabemos que esse “abolia” tem que vir entre aspas, pois a “abolição” foi um passo importante, mas não o único e nem ocorreu como aquele conto de fadas que mostravam os antigos livros de história, com a princesa assinando a Lei Áurea e todos os escravos sendo libertos imediatamente, acessando aos direitos plenos que lhes foram negados durante séculos. Sabemos todos o que a ferida da escravidão causou ao nosso País, sobretudo porque fomos um dos que mais demoraram a perceber que essa forma de relação era um absurdo e porque a mentalidade escravista permanece profundamente arraigada na nossa sociedade. Talvez não tenhamos mais as senzalas, mas temos os quartinhos das empregadas e os elevadores de serviço. Talvez não tenhamos mais as algemas para os escravos fujões, capturados por capitães-do-mato bastante afeitos à violência, mas temos as cadeias lotadas, na sua maioria, por neo-escravos capturados por uma polícia que também, muitas vezes, age como se fosse uma versão neo-capitão-do-mato. Talvez não vejamos mais os negros como animais sem alma, mas continuamos atravessando as ruas, fechando a cara, estabelecendo como padrão de beleza a brancura europeia e esguia de Gisele Bündchen, criando novelas cujos personagens são belos rapagões loiros de olhos azuis em terras nordestinas, ou moçoilas alvas em favelas cariocas. Continuamos exigindo que os cabelos sejam lisos, que a pele seja clara, que o nariz seja fino, que a alma seja branca. Continuamos achando que políticas sociais inclusivas são esmolas. Continuamos achando que racismo é uma invenção dos negros. Aliás, há um paradoxo muito interessante nessa questão: ninguém é racista, mas todo mundo conhece um. A conta não fecha. Como não fecha a exclusão a que boa parte da população foi submetida no último século; como não fecham-se as cadeias, as periferias, a falta de acesso à saúde, à educação, ao saneamento básico. Estamos mudando, é certo, mas os passos são lentos e com tropeços. O que precisamos é aprender a caminhar sem os atrasos políticos costumeiros a que fomos submetidos no último século.
Rubens da Cunha