QUEBRANDO A CABEÇA

Já é mais do que sabido que moro há anos em Maricá, uma aprazível cidadezinha turística, portal para a famosa Região dos Lagos, que compreende também, entre outras cidades, Saquarema, Araruama, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio, Búzios, etc. Maricá fica a alguns quilômetros de Niterói, tem uma infra-estrutura péssima, mas recantos deliciosos, com uma natureza escandalosamente exuberante. Estamos cercados de verdes, praias, lagoas, mares e restingas por todos os lados.

Todos os que nos visitam por alguns dias conhecem esses locais, pois eu e o Urha gostamos de apresentá-los aos amigos. No início de junho, quem esteve aqui conosco uma amiga que mora em Florianópolis. poeta que tem uma conversa encantadora e um verdadeiro arsenal de histórias interessantíssimas para combater qualquer tipo de tédio ou falta de assunto. Ouvi-la é sempre um grande prazer, e tê-la entre nós foi uma imensa alegria. Pois bem, no segundo dia de sua estada, empreendemos nosso turismo local e a levamos pelas redondezas. De repente, porém, em vez de vistas panorâmicas, quisemos proporcionar-lhe um encontro histórico, e nos dirigimos ao local onde Anchieta fez um dos primeiros milagres no Brasil. Chegando lá, não acreditamos no que vimos, ou melhor, no que não vimos: à nossa frente estava o padre, petrificado, mutilado, esquartejado, sem cabeça. Foi um momento de constrangimento, de agressão àquela tarde até ali tão perfeita.

Foi a primeira vez na vida que vi uma estátua decapitada e, talvez por isso, a imagem tenha me impressionado tanto. Tivesse eu máquina fotográfica à mão, teria registrado o momento, e concorrido, posteriormente, a algum prêmio fotográfico de uma dessas instituições que visam arquivar pedaços do Brasil... Creio que muita gente sentiria o mesmo impacto que a cena me despertou porque, se em “cada cabeça uma sentença”, neste caso, ao contrário, sentenciaram que o jesuíta perdesse a cabeça, e ele, mesmo sendo santo, não conseguiu manter sua cabeça no lugar.

Tal inusitada ocorrência não chegou a empanar o brilho do nosso passeio, mas deu-me muito que pensar, constituindo-se em matéria de sérias reflexões nos dias seguintes. Afinal, o que leva uma pessoa a decapitar uma estátua? Em uma terra como esta, repleta de Igrejas Universais, seria algum problema de fanatismo contra a religião católica? Vontade que quebrar a rotina quebrando uma escultura? Ou simples prazer da degola?

Quanto à autoria desta tremenda cabeçada penso que deva ser atribuída a quem perde sua própria cabeça pelos vandalismos e desatinos diários e que, numa noite, insanamente, resolve projetar seu conflito interior destruindo uma obra de arte, de pouca utilidade ou nenhuma serventia para a quase totalidade da população maricaense. Ou então, o criador da obra destrutiva poderia ser alguém que, com a revolta subindo-lhe à cabeça, e sem poder ver as cabeças de certos políticos que estão no poder rolarem, satisfez sua vontade inconfessável através de um ato simbólico, tipo “dente por dente, olho por olho” e cabeça por cabeça. Sobre o mistério do fim dado ao busto de Anchieta, também formulei mil hipóteses, bem menos politizadas: terá ele sido levado como “souvenir” por algum turista maníaco por lembranças exóticas de países tropicais? Estará, neste momento, ornamentando, como troféu, a sala de algum colecionador, ao lado de cabeças empalhadas de leões e outros bichos selvagens?

Ninguém sabe, ninguém viu. O fato é que o “Apóstolo do Brasil” levou na cabeça: o primeiro filólogo que tivemos continua lá, decapitado, esperando talvez pelo maior de todos os milagres (tão enorme que talvez nem ele próprio seja capaz de realizar): o prodígio espantoso de algum político notar o abandono em que a cidade se encontra, reparar os estragos, dando mais atenção também à preservação dos monumentos históricos, tão poucos e raros. De qualquer forma, agora está claro, explícito e explicado para mim o porquê do país não ter memória: faltam cabeças... (naturalmente as pensantes, porque as ocas e as de vento, estas abundam). Uma última observação: se mais monumentos começarem a aparecer decapitados pelo país, começarei a pensar em um serial killer de estátuas, que, se descoberto, poderá até ser preso por dano à propriedade pública, mas certamente ficará milionário, vendendo os direitos da história de sua vida para altos produtores executivos da indústria cinematográfica hollywoodiana. Provavelmente será a glória.

Só espero que Maricá, que entre os cariocas da Zona Sul já é tido como o lugar “onde Judas perdeu as botas”, também não seja considerado, a partir de agora, como o lugar onde Anchieta perdeu a cabeça...

Leila Míccolis

« Voltar