Myriam Fraga - Flor do Sertão
Da geração de poetas brasileiros que cresceu na sombra acolhedora de revistas e cadernos culturais, nas décadas de 1970 e 1980, guardo o nome de Myriam Fraga de uma forma bem especial. Um retrato seu que vi publicado num suplemento de cultura, não sei por que tanto me chamou a atenção.
A partir de então, cuidei que seria imperativo o conhecimento da sua produção. O Risco na Pele e As Purificações ou o Sinal de Talião – publicados pela Editora Civilização Brasileira, em 1979 e 1981, respectivamente –, foram os livros de sua autoria que li logo após a sua edição, os quais, me permitiram extrair da obra da autora uma persistente admiração.
Hoje, tendo em vista as informações que venho acumulando, sei que Myriam Fraga representa, para a literatura da Bahia, um momento sublime de consagração. Em livros como Marinhas (1964), Sesmaria (1969), O Livro dos Odynata (1973), A Cidade (1979) e A Lenda do Pássaro que Roubou o Fogo (1983) flui, com certeza, a dimensão da poetisa sóbria e humana que ela não conseguiu esconder.
Do poema em verso, inesperadamente, vejo, agora, Myriam Fraga transitando para o poema em prosa, no ensaio sentimental, biográfico e cativante que se contém no seu livro – Flor do Sertão (Salvador: Edições Macunaíma, 1986), que me chega às mãos por meio da amizade de Favela Filho, esse embaixador da cultura que possui a virtude de unir a Bahia ao Ceará.
De Favela Filho, pois, recebo essa bela notícia tecida por Myriam Fraga em torno do amor infeliz da moça Leonídia pelo maior poeta condoreiro do Brasil. Em Flor do Sertão, Myriam Fraga busca resgatar uma dimensão do autor de Espumas Flutuantes ainda não revelada pelos estudiosos da sua produção.
Ao narrar o regresso do poeta Castro Alves ao espaço deslumbrante de Curralinho e, portanto, aos pagos da sua Província natal, Myriam Fraga, em linguagem perdidamente poética, revela-nos o seguinte: “reclinado numa cadeira de lona, no pequeno convés ao abrigo dos ventos, respira com dificuldade o ar salitroso seguindo distraído o voo rasante das aves marinhas e a massa umbrosa do arvoredo de onde se destacam, às vezes, contrapondo ao zumbir monótono das cigarras, cantos de pássaros e gritos de marrecas”.
Noutra passagem do seu texto, ao referir-se à essa musa desconhecida do poeta Castro Alves, Myriam Fraga deixa veiculada a certeza de que a moça Leonídia, “a dos cabelos negros, a dos seios virginais, a pomba que arrulhava nas campinas devastadas daquela alma enferma, a ‘infeliz serrana', tinha, contudo, algo que o atraía mais do que a simplicidade de uma flor silvestre”.
Na história do amor de Castro Alves por Leonídia Fraga, a Myriam poetisa, igualmente Fraga, não faz somente ensaio em ritmo de poesia, mas também nos ensina os mistérios da arte de criar: “o momento da criação é o espaço anulado do tempo sem limite, obscura espiral onde boiam detritos – hoje, ontem, amanhã – misturados num momento único onde só existem um coração e seu compasso”.
Adiante, oferece-nos a seguinte lição: “a verdade da poesia advém de uma experiência vivida, mas também pode vir de uma experiência mentalizada. Não somente a vivência, mas também a imaginação”.
E acrescenta Myriam: “um poema, depois de pronto, deixa de pertencer ao poeta, não pode ser considerado um macro da sua biografia, uma página arrancada do seu diário íntimo. Um poeta é um corpo, poderoso e independente, cosmos em permanente mutação, universo de múltiplos significados que se criam e destroem ao bel-prazer do leitor”.
Igualmente do livro dessa grande poetisa baiana extraio esta afirmação: “não há fronteiras para a criação, nem de espaço nem de tempo. Uma vez instaurado o processo criador, a imaginação move-se livremente num território que lhe é próprio e que se cristaliza nos limites do branco, onde o verbo se faz carne – radioso sinal de uma obscura alquimia”.
É claro que Myriam Fraga se refere, em primeiro lugar, ao momento de criar do mais expressivo poeta que a Bahia deu ao Brasil. Entretanto, nestas e em outras passagens de Flor do Sertão , Myriam Fraga se revela observadora invulgar.
Em Flor do Sertão ela entrelaça o poeta e sua musa no abraço sentimental e criativo mais humano e certamente mais universal, revelando-nos o que poucos biógrafos de Castro Alves não souberam revelar: o momento sublime que fecundou a essência da criação do autor.
Se Castro Alves, como quer Lopes Rodrigues, “amou em demasia mas não teve um amor decisivo”, eu diria, assimilando as palavras de Myriam Fraga, que, ao lado da sua musa Leonídia, ele experimentou o dilema ou até mesmo a tragédia da sua incontrolável paixão, vivenciando, assim, os mistérios mais insondáveis do amor, “envolvido em sua própria contingência, absorvido na contemplação do seu próprio sofrimento”, ou mergulhado nos arcanos da sua alegoria existencial.
Dimas Macedo
Do livro: Ossos do Ofício, Editora Oficina, 1992, Fortaleza/CE
Envio de: Diego Mendes Sousa
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