“Garoa do meu São Paulo
– Costureira de malditos...
Garoa, sai dos meus olhos.”
Mário de Andrade
Subindo ou descendo a Ladeira da Memória, de repente, num passe
de mágica, estou no centro do universo.
Olho os tropeiros no painel de azulejos partindo para o interior de São
Paulo; olho o chafariz que já deu de beber a muitos habitantes desta
cidade; olho o
Obelisco da Memória, entre o verde do pequeno jardim e a figueira
centenária que estende os braços ao céu, ao infinito...
Talvez o Obelisco tanto queira abranger que, nesse repente mágico,
crie a explosão da memória; talvez seja o Obelisco relampejando
o grito de um brilho
de maravilhas...
Talvez seja o sol entre o ouro desbotado de uma folha da figueira, um sol
que é muito mais do que o sol, e um ouro mais precioso do que qualquer
pedra
preciosa, numa folha que se distingue de todas as folhas que a natureza
já inventou, numa árvore de excelência tal que nela
se concentram todas as árvores da
história...
Jorge Luis Borges encontrou o seu Aleph num porão; o meu está
na Ladeira da Memória.
Não sei em que ponto determinado, em que instante preciso, mas subindo
ou descendo a Ladeira da Memória, dá-se um estalo, uma iluminação,
que é a
minha epifania, uma revelação das revelações,
e eis-me no centro do universo.
É, como diz Borges, o desespero do escritor: como transmitir, com
a pobreza de símbolos da linguagem humana, a minha visão
simultânea de tudo que foi,
é e será, numa complexidade ilimitada, impossível
de se abarcar com a nossa inteligência limitada?
Estarei sonhando, devaneando, perdendo-me na floresta das palavras vazias
em que se perdem os escritores quando querem exprimir o inexprimível?
Sei que é isso mesmo: é o inexprimível o que tenho
para exprimir.
Como abrir ao leitor a clareira de algumas pistas, mínimas, simples?
Como desfazer as dobras deste manto inconsútil e mostrar aos olhos
do mundo o Absoluto, dar-lhe umas e outras imagens, claras, porque vistas
do alto
deste meu Aleph?
Estou no centro do universo; para mim convergem todas as imagens, todas
as vozes, todos os homens com sua cultura e desejos e ideais; neste ponto
mínimo de São Paulo está o espírito do
homem, com as suas glórias e conquistas, as suas misérias
e derrotas.
Nesta Ladeira esquecida, onde ninguém nem tem tempo de se lembrar
de mais nada além, mal percebe e já passou, porque é
tão pequena, apenas uma
ladeira...
Nesta Ladeira, ou porque o Obelisco está captando uma energia cósmica,
ou porque o espelho d’água do chafariz reflete todas as vibrações
espirituais,
capta todas as sensações humanas...
Nesta Ladeira está São Paulo inteira; e em São Paulo
está o universo, todos os homens e todos os povos, com tudo que
puderam ou poderão conceber,
imaginar, inventar.
Quando foi plantada, ali no Pátio do Colégio, a semente do
que seriam este lugar e sua gente, quando aqui habitavam umas míseras
cento e trinta almas, já
éramos índios e portugueses, espanhóis e franceses,
alemães e italianos; já éramos a gênese de todos
os povos; já éramos o cadinho onde se produziria o
caldeamento da raça humana numa só.
São Paulo nasceu cosmopolita.
O paulistano não é um, mas, como diria Mário de Andrade,
são trezentos, são trezentos e cinqüenta, são
todos os homens do globo.
Garoa, sai dos meus olhos; poluição, sai dos meus olhos;
cegueira da indiferença, de tudo que inibe a visão, sai dos
meus olhos.
Eu quero ver com clareza; eu quero saber quem são os meus irmãos;
eu quero saber quem é pobre e quem é rico, quem é
preto e quem é branco ou
amarelo, porque todos são meus irmãos; porque em todos
corre nas veias o mesmo sangue paulistano; e pulsa no peito o coração
de um mesmo homem, que sente
as dores e alegrias de todos os homens, porque é todos os homens;
e pulsa no peito o pulmão que impulsiona, a um só tempo,
todas as aspirações humanas.
Agora, neste momento, sou empurrado porque estou no caminho, atrapalhando
os transeuntes apressados; abraço a figueira paulistana, que me
oferece a
sua sombra e o seu sonho de altura; olho, a dois passos, um pardal
que bebe água, como um convite à simplicidade do destino;
contemplo uma pomba branca que
alça vôo de um galho voltado para o infinito, rumo à
amplidão, como um apelo à paz possível, abrindo-me
as suas asas, presente; sei que esta graça que estou
recebendo, este benefício inumerável não pode
ter fim.
Passa por mim a correria, a azáfama, o pulsar do sangue do universo;
estou em meu canto, quieto, deixando fluir por mim esta sabedoria que palavra
não
define, este sentimento de congraçamento com os chineses e russos,
os esquimós e escandinavos, os brasileiros e portugueses de todas
as cores e credos, e com
todos os povos da humanidade, porque todos são paulistanos.
José Carlos Mendes Brandão
Prêmio Biblioteca Mário de Andrade de Literatura, tema São Paulo/450 anos, crônica entre as 50 selecionadas para publicação em livro.