TAO

Passara a escrever tudo que lhe acontecia. Detalhes, acontecimentos pertinentes, emoções, raivas, tudo que conseguia expressar por meio das várias línguas que conhecia. À noite quando não acontecia nada, depois de haver escrito que nada acontecera, ele então ficava a ler tudo que havia escrito. Corrigia seu texto, deformava alguns fatos para fazê-los mais verdadeiros, encurtava silêncios para não deixá-lo enfadonho, misturava protagonistas, os deixava todos interessantes.  O que mais apreciava era ver seu dia passado a limpo, um dia lindo, rico, cheio de pessoas e fatos fascinantes. Tao transcreveu anos e anos da sua vida, a preencher centenas de folhas com pequenos capítulos, trezentos e sessenta e cinco ou seis deles por ano.  Com o passar do tempo ele passou a arriscar já deixar escrito o que aconteceria no dia seguinte, afinal sua vida era tão igual...
Não tentem fazer que explique como ou mesmo quando aconteceu, mas num desses dias, Tao tentou escrever o dia seguinte. Inteirinho. Só por brincadeira. Ao acordar, escovou os dentes, tomou café, até aí nada, mas depois perdeu o metro como havia escrito, foi admoestado por seu chefe, voltando para casa, perdeu seu guarda-chuva.  A parte boa? Só teve que corrigir um ou outro detalhe, o resto estava pronto. Gostou da experiência e fez de novo. E assim foi, escrevendo um dia antes, tudo que aconteceria no dia seguinte. Confuso, se as coincidências eram forjadas inconscientemente por ele ou não, Tao passou doze meses, "pré-vistos" e conclui que aquilo era muito chato. Sua vida não tinha mais graça.
Resolveu então ousar. Passou a inventar aventurosas aventuras para si mesmo —  testemunha de crimes, extra em passeatas, discursador em manifestações, e coisas que valham. E uma noite resolveu que era hora de se apaixonar.  Inventou uma mulher, lindíssima e misteriosa, que o abordaria na estação.  Esperou o dia seguinte insone.  Chegou a estação e quando a viu — ela era exatamente como a havia descrito, teve que correr para despertar e entrar em seu vagão.  Ela deveria olhar par ele. Nada. A olhou insistente. Nada. Concebido o inconcebível, Tao a seguiu. Depois de alguns metros ela voltou-se e questiona:
— O que tá rolando?
Responder o quê? Afinal como explicar a uma personagem que ela é uma?
— Nada, respondi. Achei você linda, só isso.
— Só isso? Então tá bom. Achei que fosse um daqueles...
Foram tomar um café juntos. Ela pediu um expresso, ele só um copo de água mineral.
— O que você faz?
Ela demorou em responder,
— Nada.
— Como assim, Nada? Ninguém faz nada. É uma contradição até gramatical, o verbo fazer implica numa ação.
— Pois é. Eu consegui. Não faço nada. Aliás, nem sei porque estou aqui. É como se estivesse sendo manipulada por um diretor invisível.
— Ah! Você é atriz.
— É, acho que era. Sou. Sei lá.
— Teu nome?
Respondem juntos:
— Ísis.
— Como é que você sabe?
— Sei lá. Vai ver que eu escrevi essa estória.
Ela não deu bola a última informação. Passaram a ver-se com freqüência. Tanta freqüência, que Tao nem tinha tempo para escrever, e quando o fazia, a sua versão era tão distorcida, acrescentada, maquiada que parecia qualquer coisa menos a realidade. Tao voltou a dedicar-se a escrever o amanh㠗 amanhã, no lugar do dia  a  dia.  Consultava discretamente sua parceira e depois inventava as mais deliciosas horas cotidianas, segundo o humor de cada um. Um dia, numa Sexta-feira, amanheceu sem roteiro. É que eles iriam viajar e os preparativos os consumiram, sugaram todos os minutos disponíveis nas preparações e Tao não pôde escrever nada. Deveria.
O dia prometia acabar bem, quando um pesadelo tomou conta da situação, o táxi que os levava envolve-se num monstruoso acidente de trânsito, Isis vê o ônibus vir em sua direção, suspira e num olhar ao seu amado Tao perdoa-o por não ter escrito um final melhor. Ele ouve seus ossos trincarem, o cérebro a chacoalhar dentro de sua caixa craniana. Depois o contínuo tracejar, o coma três, o sinônimo da morte cerebral.
Tao, volta com seus poucos arranhões pra seu refúgio, onde cada molécula, cada composto, objeto, canto, o martirizam em sua realidade: havia sobrevivido à sua criação.  Tao outra vez só. Relê cada página/dia, ultimamente compartilhado com sua musa, agora um potencial conjunto de órgãos a serem doados.
— Ísis, Ísis, porque não escrevemos tudo antes? E como um louco começou a reescrever tudo de novo, passo a passo, cena a cena, e desta vez eles nem iriam ao aeroporto, mas ao seu sítio e ninguém dirigia um carro, tampouco estavam naquela esquina quando o ônibus chegava naquele instante. Escreveu fervorosamente toda à noite, adormeceu num transe, num sono profundo, onde sentia as violentas forças do universo retorcerem-se, intrincarem-se e imbricadas, se enrolam numa volta encontrada para desfazer o já feito. Tao acordou atordoado. Olhou seu reflexo no espelho e não detectou mudança alguma. Mas depois começou a olhar seu quarto e não o reconheceu. Não aquele não era seu quarto! Onde estava? Olhou melhor e viu que alguém havia dormido ao seu lado. Levantou-se correndo e foi para cozinha. Seu coração parou: Ísis estava lá, com cara de sono perguntando o que comeriam naquela manhã. O cenário era outro, mas a heroína a mesma.
Tao parecia não escrever mais nada. Seus diários, dos quais parecia ter medo, viraram cinza na sempre acesa lareira. Queimou a todos sem exceção. Isis nunca entendeu, afinal naquela última e fatídica noite, não haviam escrito nada.  E por essa razão todas as noites ele escrevia: "Nós estamos vivos, e vamos acordar amanhã". Mais nada. Assumia sua vida na própria existência da mesma. Mais nada era importante a ser escrito. Nada.

Silvia Cobelo

Premiado pelo site literário "Na Toca do Hobbit", 2002.

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