O REI ALADO

         Do alto de seu trono de trinta metros de altura, o rei Grebos contempla seus domínios.

        “Estas terras”, aponta com o olhar para o Conselheiro, “multiplicaram-se por mil durante meu reinado.”

         “Graças à habilidade de Vossa Magnificência”, adula o outro.
 

*  
         No ano um de seu governo, quando sequer tinha pêlos na face, o monarca chamou os generais de seu exército. A armada, então, não era mais que meia dúzia de pelotões mal equipados e aos farrapos.

         “Quero que divulguem em toda a terra de Ulr que, de agora em diante, o serviço militar será remunerado. Instituo, pois, o soldo a todos os cidadãos que, por livre arbítrio, desejarem formar as fileiras de meu novo exército”.

         Enquanto os comandantes anunciavam a nova, o rei mandou vir à sala do trono seus mais influentes Conselheiros.

         “A partir deste momento”, orientou aos anciões, “todas as forjas deverão trabalhar com o objetivo de produzir armaduras, lanças, espadas, escudos e capacetes para meus guerreiros. O exército de Grebos será a força do povo de Ulr”.

         Depois de dispensar o Conselho, o jovem imperador enviou emissários aos reinos vizinhos.

         “Desejo, sob minhas ordens, todos os comandantes que venceram suas últimas batalhas. Pagarei a eles seu peso em ouro, se concordarem em treinar meus generais e seus esquadrões”.

         Assim, com um exército numeroso, bem armado e treinado nas artes da guerra, em pouco tempo Ulr não apenas defendia suas fronteiras do ataque constante dos inimigos, mas, sobretudo, ampliava-as. As densas florestas, onde viviam dragões nunca vistos, ganhavam sesmarias em sua expansão. Os rios, berço de serpentes aquáticas gigantescas, transformavam-se em oceanos, tamanho era o volume d´água conquistado a golpes de maça e espada. O reino de Ulr expandia-se. O monarca estava feliz. E seus súditos. Com a riqueza que vinha dos territórios conquistados, menores eram os impostos que o povo tinha que recolher às burras oficiais. Grebos, ainda que jovem, era sábio.

*

         Com a paz resultante da capitulação dos inimigos, o monarca mais uma vez reuniu seu Conselho. Era o décimo ano de seu reinado.

         “O povo já não carece de alimentos. Nossos campos oferecem o melhor trigo que possa haver, e dele as camponesas criam o pão que, sabe-se, não há igual para além dos horizontes de Ulr. O capim que viceja em nossa terra é pródigo em engordar o rebanho. Fortificadas pela água pura que as nutre, nossas árvores oferecem frutos brilhantes e suculentos. Apesar de tudo, existem outros tipos de fome”.

         Mesmo que os anciões representassem a casta intelectual do reino, ficaram a esperar a explicação do soberano.

         “Aqui”, disse, batendo levemente com o indicador na têmpora, duas, três vezes. “O povo tem fome de saber”.

         “Pode ser perigoso”, arriscou um Conselheiro.

         “Não tema”, tranqüilizou o monarca. “Determino que cada membro deste Conselho será, doravante, mensageiro das ciências conhecidas e ocultas, levando-as desde os suntuosos castelos até a mais humilde palafita de Ulr. Sua palavra será a força do povo de Ulr.”

         Desconfiados, porém fiéis ao rei, saíram os Conselheiros a semear seu conhecimento. Grebos, então, chamou a si, mais uma vez, seus emissários.

         “Procurem, onde quer que seja, todos os tomos das obras dos sábios da eternidade e tragam-nos a mim”.

         Nem bem os emissários partiam em seus corcéis, os arquitetos reais eram convocados.

         “Construiremos a maior biblioteca de que nossa época tenha notícia. Quero que os doutos do mundo todo venham procurar conhecimento em Ulr. E será aberta, irrestrita. O povo dela fará usufruto como melhor lhe convier”.

         Saciadas as fomes física e espiritual, o povo de Ulr erguia vivas a seu soberano.

*

         Na véspera do vigésimo aniversário de reinado, Grebos convocou seu Conselho de anciões. Eram, então, apenas três. Os demais haviam sucumbido ao peso da idade.

         “Já não sou o jovem que era quando tomei este cetro”, falou, alisando a espessa barba como um sinal de comprovação do que acabara de constatar. “Tomei-o das mãos frias e sem vida de meu amado tio, o imperador que foi morto pela picada de uma víbora improvável, da qual ninguém jamais viu a horrenda figura. Pois o tomei de suas mãos, uma vez que meu tio nunca teve um herdeiro direto”.

         Os Conselheiros permaneceram em silêncio, na expectativa do que poderia querer o monarca.

         “Meu tio nunca teve um herdeiro”, retomou, depois de breve pausa para refletir, “porque nunca teve uma mulher por esposa. Envolvido em questões de Estado, deixou de lado seus desejos pessoais”. A afirmativa escondia a malícia do povo, que dizia que o rei anterior não casara por não ser afeiçoado aos encantos femininos. Os sábios continuavam calados, embora o mais velho de todos procurasse esconder um sorriso entre os fios cinzentos do longo bigode. “O próximo senhor de Ulr será legítimo herdeiro de Grebos. Sangue de meu sangue. Tragam a mim as mais formosas donzelas do reino, para que entre elas possa escolher a que tomarei por rainha. Nossa união será a força do povo de Ulr”.

         Assim, nos meses seguintes, desfilaram pelos corredores e pelas câmaras do palácio real inúmeras virgens, escolhidas pelos Conselheiros e emissários oficiais. Por ordem do monarca, não houve distinção quanto à origem. Filhas de abastados fazendeiros batiam-se nas escadarias com as primogênitas dos humildes serviçais. Algumas, belas, esguias e de olhos brilhantes como as estrelas da primavera. Outras, menos atraentes, mas com encantos ocultos que faziam palpitar os corações de jovens guerreiros.

         Grebos seguiu seu instinto na escolha, e, no oitavo mês do vigésimo ano de seu reinado, casava com a filha do estalajadeiro de Ulr. Mandou que todas as demais candidatas fossem presenteadas com jóias e roupas, pelo tempo dispensado ao pretendente.

         Todo o povo de Ulr compareceu à festa matrimonial, pois assim o decidiu o rei. Também os antigos desafetos, hoje mandatários dos reinos aliados. E todos dançaram, comeram e beberam por seis dias e seis noites consecutivas. E no sétimo dia descansaram.
 

*

         Sem guerras, sem fome e saciados de saber, os habitantes de Ulr festejaram o nascimento do legítimo herdeiro do trono, no vigésimo segundo ano do reinado de Grebos.
 

*

 

         Agora, quando o monarca mede com os olhos a extensão de seu império, o Conselheiro remanescente – todos os outros já partiram -  volta-se para o soberano.

         “Vossa Iluminescência multiplicou as terras de nosso reino, graças à astúcia e ao espírito guerreiro que traz desde o berço; aplacou a fome de seu povo e deu-lhe sabedoria, para escolher o caminho a seguir; projetou o futuro do império na forma de um filho. O que mais resta a Vossa Sapiência para que seja como um deus?”

         “Quero voar!”, respondeu, seco.

         “Como?”, espantou-se o ancião.

         “Quero voar”, repetiu, “dêem-me asas!”.

         Todos os cientistas do reino foram convocados. Os físicos e os químicos e os biólogos. E os feiticeiros e os alquimistas e os bruxos, detentores dos conhecimentos sombrios.

         Um colegiado de doutores foi formado. Alguém ponderou que o rei deveria estar senil. Foi duramente censurado. “É impossível voar”, insistiu. “Mas os pássaros voam”, respondeu um estudioso das ciências naturais. “Quem duvidará da vontade de Grebos?”, desafiou o Conselheiro, “acompanho a trajetória deste grande homem desde que tomou o cetro real das mãos do tio morto, vitimado pela peçonha da víbora improvável, e sei que é feito da mesma matéria com que se constroem os deuses”.

         E, finda a discórdia, puseram-se a trabalhar.

         Os alquimistas propuseram a beberagem de uma poção, a qual, uma vez ingerida, faria com que o monarca levitasse alguns metros do chão.

         Os feiticeiros e bruxos expuseram as vantagens do ritual místico, através do qual o iniciado deixa sua casca de carne e viaja pelo mundo apenas com a alma.

         Os físicos construíram uma engenhoca com rotores e hélices e fios metálicos. Garantiram a segurança do aparelho, que poderia planar se alçado pela força de quarenta juntas de bois.

         Os químicos apenas teorizaram que a presença de determinado metal como combustível tornaria a engenhoca mais segura.

         Os biólogos apresentaram um par de asas, confeccionado com as penas da maior ave predadora dos altiplanos de Ulr.

         Agradecendo o esforço do colegiado, Grebos pôs-se a falar.

         “Não tenciono apenas levitar; erguer-me poucos metros do chão e ficar no desejo de ir mais longe. Além do quê, minha saúde já não é a mesma de antes, e ignoro o efeito das poções em minhas entranhas”. E dispensou os alquimistas. “Também não é minha intenção separar carne e espírito; as experiências anteriores já provaram não ser a melhor receita”, constatou, referindo-se à conhecida história do rei Kalaphangko e sua consorte Kinnara, “desta forma, dou graças ao árduo trabalho dos sábios que estudam o ocultismo, mas não mais careço de seus préstimos”. Dirigindo-se ao próximo grupo, sentenciou, “ espero voar por minha força e vontade, sem a necessidade de aparelhos ou engenhocas; a rigidez de meus braços deve ser o único dínamo a impulsionar meu corpo rumo ao céu infinito”.  E retiraram-se físicos e químicos. Voltando-se, por fim, ao grupo de biólogos, tomou o par de asas, fitando-o em silêncio. “É isso!  Amanhã, quando o sol atingir seu ponto mais alto na esfera celeste, Grebos voará!”.

         Não dormiu aquela noite. Tampouco o Conselheiro e os biólogos. A rainha chorou baixinho, para que o marido não ouvisse.
 

*

         Do alto de seu trono de trinta metros de altura, Grebos contempla seus domínios. Depois, lentamente, ergue os olhos para o céu. O astro-rei aproxima-se de seu ápice. Fita as asas presas aos braços musculosos, embora sem a juventude de outrora. Certifica-se que a coroa está bem presa à cabeça, como sinal de majestade e segurança. Olha, ainda uma vez, para a mulher e o filho, que não ousaram tentar demover-lhe da idéia. E parte, em velocidade, pela plataforma que foi construída durante a noite e é presa ao trono. Agita compulsivamente os braços, fazendo cair algumas das penas das asas. E atira-se no vazio. O corpo pesado cai com rapidez. Ele agita ainda mais os braços, com força e vigor. O povo, atordoado, vê o monarca dirigir-se irremediavelmente para a morte. Alguns gritam, outros choram, abraçando-se mutuamente. Mas, no instante final, quando parece que o rei fatalmente tocará o solo, espalhando carne, ossos e sangue para todos os lados, um movimento mais brusco faz com que asas funcionem. Desenhando uma curva ascendente no ar, Grebos ganha estabilidade e plana. Está voando! Entre vivas, o povo de Ulr vê seu imperador navegar em nuvens. Sorri e cumprimenta os pássaros. E afasta-se pelo azul infinito, até tornar-se um ponto negro na direção do poente.

         E Grebos nunca mais pousou sobre a terra de Ulr.

Marcelo D'Ávila  
Prêmio Jornalista William Cardoso 2004 - ASES - Associação de Escritores de Bragança Paulista /SP - Classificada para a inclusão na Antologia do Concurso.

« Voltar