Destino

“E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande cheia de pessoas fortes. Os meninos nas escolas aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles, dois velhinhos acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria mandando gente para lá. O sertão mandaria para lá homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”
RAMOS Graciliano, Vidas Secas, cap. XIII

O sol nascia sobre a caatinga e já parecia velho. O calor deixava a terra mais vermelha e crestada. Os mandacarus sombreavam o chão com jeito de gente magra e atrofiada. Gente pedinte com os braços para o céu muito azul que se esbranquiçava ao se firmarem as vistas.
Fabiano acordou, procurou a cuia e voltou ao bebedouro dos animais para pegar mais um pouco de água. Viu que Sinhá Vitória fustigava o solo seco a procura de raízes de imbu. Os meninos estavam sentados quietos olhando a mãe trabalhar sem vontade de brincar e Baleia enfiava o focinho nos buracos abandonados pela mulher ajudando a procurar o que comer.
Atravessou o curral deserto e foi saudado pela cachorra que abanou o rabo animada. Desceu a ladeira com Baleia correndo à sua frente e encontrou um pouco de água no mesmo lugar do dia anterior. Com cuidado para não derramar nenhuma gota, retornou à casa que sonhava limpar e consertar, que pensava tomar para si e sua família mas quedou-se com o coração apertado de surpresa.
Longe, lá no fim aonde o vermelho se funde com o azul do céu, Fabiano viu uma massa escura envolta no pó seco. Era uma coisa monstruosa. Correu para casa e mostrou à Sinhá Vitória com um esticar de beiços, o horizonte que ficava cada vez mais negro e enfumaçado. Ela olhou e, instintivamente abraçou os meninos que agarravam a sua saia.
Fabiano, assustado, ainda pensou em sair dali. Um sentimento que ele não entendeu de onde surgiu mas que estava escondido no coração o impediu. “Não arredo o pé”, pensou. Ele achou a fazenda. Chegou ali primeiro. Lutaria se fosse preciso. Afinal ele era ou não era um homem? Duvidou por um segundo. Era um bicho capaz de defender a sua toca, decidiu com uma reviravolta no peito.
Não demorou muito e a massa escura se transformou em gente. Homens, mulheres, crianças. Gente de todo tipo. Vinham a pé, de pau-de-arara, ônibus. Foram chegando com grande algazarra. O medo aumentou dentro dele. Baleia latia inquieta.
Um homem alto e magro chegou devagar a apertou a mão de Fabiano que devolveu um cumprimento mole. E o estranho conversava difícil umas palavras que a família não entendia: reforma agrária, assentamento, distribuição de renda, educação e saúde para todos, justiça e solidariedade, partilha. Falava de uma tal irrigação e explicava da água que não mais secaria. Contava do rebanho que engordaria, do verde que se estenderia até o horizonte aonde o olho não alcança. A família não entendeu mas de dentro do coração acharam bom.
Pouco a pouco o povaréu foi se acalmando. Levantaram o acampamento, acenderam fogueiras. Enquanto os homens trabalhavam, as mulheres cantavam e partilhavam a comida que tinham trazido. Apareceu uma viola e fizeram uma grande festa. Os homens estavam felizes e as mulheres dançavam. Fabiano e Sinhá Vitória sorriram ao verem os filhos brincando de carreira com os outros meninos. Baleia dormia satisfeita, o bucho farto.
Quando a lua voltou e iluminou tudo com seu brilho imenso, Fabiano voltou a contar as estrelas (tinha sim, com certeza mais de cinco) e, preparou-se para a verdadeira mudança. Ele sabia que não sairia da sua terra de novo, que nunca fugiria da dor e da seca. Que as suas raízes cresceriam mais fortes que o juazeiro. Maiores até que a caatinga toda. Ele viu o seu pedaço de terra, bonito, plantado, os meninos com saúde, correndo felizes. Sinhá Vitória, gorda e bonita de novo, conversando, e eles falando difícil e bonito como o homem alto e magro. Viu com os olhos do coração Baleia gorda, cuidando dos filhotes. Ouviu o mugido do rebanho. Sentiu o cheiro do mato. E pela primeira vez teve certeza: sou Homem.

10/10/2003

Daisy Melo

Concurso "Nossa gente, Nossas Letras",  dezembro de 2003.  Selecionado entre os 20 textos a serem publicados na Edição Comemorativa dos 100 anos de Graciliano Ramos, pela editora Record. A proposta era a de que,  a partir do primeiro capítulo de "Vidas Secas" e usando os mesmos personagens, fossem criados textos em tom mais otimista e que refletissem um utópico "Brasil do Futuro".
 

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