O Matemático

          Acordo com o chocalhar estridente do guizo. Guizo? Tento abrir os olhos. O sol, a pino, cega-me. O calor está insuportável. Consigo, por fim, aos poucos, vislumbrar a luz e percebo que estou sentado, com os pés e as mãos (estas às costas) amarrados. Ambas as pernas encolhidas, atadas também, encostado e sentado em uma parede de terra vermelha recém escavada, cheirosa, fresca: Um buraco. Estou em um buraco, aberto há pouco. À minha frente uma cascavel, enrolada em si mesma, olha-me fixamente. A parte superior do corpo, empinada, forma um “S” mortal. Na ponta, fitando-me, a cabeça pequena, escura, triangular, com duas minúsculas fossetas loreais escuras. Os olhos oblíquos, sem expressão definida, fitam os meus.
          Calculo as dimensões do buraco, onde me encontro, em 90 cm de profundidade e 1,10 m de diâmetro. Isso dá..., dá... 0,721 m3. Quase mil litros. Logo esta foi a quantia de terra retirada para abrigar-me. Para que e por que fizeram isso? Um trabalho exaustivo, sob um sol desses, de janeiro? Pelas medidas deduzo que toda esta operação foi feita especialmente para mim, que meço 1,70 m, e, sentado, como estou agora, chego a 0,85 cm do piso ao alto da cabeça.
          O problema é que não posso usar mais nada além do cérebro para tentar alguma saída ou obter qualquer socorro externo. Ao menor movimento, o réptil pode atacar.
          Alguém teve a idéia genial de colocar-me amarrado, dentro desta cavidade, juntamente com um ser tão perigoso. Por quê?
          Girando rapidamente os olhos, para a esquerda e a direita, quase atingindo 180º, que é a única coisa que posso fazer, além de raciocinar febrilmente, percebo não haver ninguém por perto.
          Quem poderia ajudar-me?
          A canícula queimava os meus braços, as pernas, (percebo agora, que estou de camiseta, short e tênis) testa, a cabeça, de rarefeitos cabelos, apesar dos meus 35 anos.
          Penso que fizeram um serviço excepcionalmente planejado e bem feito.
          Até a terra extraída daqui foi removida. Quiçá para não atrair algum curioso.
          Sinto dores nas pernas, tento movê-las mas paro imediatamente, estarrecido, apavorado, pelo chocalhar terrível, exigindo imobilidade. A inércia tem muita força.
          O guizo, na ponta da cauda, treme – às vezes, forte, raivoso; outras, calmo, quase parando – conforme os humores da víbora. Na boca, semi-aberta, dois dentes pontiagudos. Tento manter-me estático, mas o suor me empapa por completo. Gotas começam a deslizar, suavemente, do pescoço à virilha; das axilas à cintura, passando sobre as pequenas ondas das costelas esquerda e direita, como que disputando uma corrida inútil, sem vencedor. É o medo impondo-me sua angústia.
          Uma pequena e inoportuna gotinha de suor aparece na minha testa e chama a atenção do ofídio. Seus olhos abandonam os meus e fixam, rápida e perigosamente, a pequenina bolha de luz surgida do nada. O reflexo fulgente deve tê-la feito brilhar. Tento fixá-la, prendê-la, imobilizá-la ali. Se cair, obedecendo à gravidade... Oh, Newton, meu mestre!
          Interessante. O simples gesto de desviar os seus olhos dos meus e focalizar o pontinho, na minha a testa, forma, no meu raciocínio de matemático, um triângulo isósceles, onde o cateto, (distância dos meus olhos até o ponto) dá uma reta de 6 cm. Tentei calcular quantos graus corresponde esse pequeno fragmento de reta... Chega de raciocinar, idiota. Agora não é hora disso.
          Leciono matemática há treze anos e estou cansado. Basta. Recebi uma proposta muito boa daquela famosa multinacional de lâminas de barbear, para o seu Departamento de Estatística e vou topar.
          Instintivamente, por força da profissão ou do hábito, calculo que a parte mais grossa do corpo do monstro rastejante, bem no meio, deva ser igual a um desses canos plásticos, brancos, usados para esgoto, medindo 4 polegadas de diâmetro. Uma polegada é igual a 25,4 mm ou, 2 centímetros, 5 milímetros e 4 décimos, que, multiplicado por 4 é igual a..., a..., 101,6 mm. Ou, arredondando, 10 cm. Presumo, por isso, que ela engoliu recentemente um animal de pequeno porte, ou deve ser muito velha e atingiu esse tamanho descomunal com o correr do tempo. Não entendo nada de cobras. Se eu sair vivo daqui, vou verificar.
          Então o guizo mortal ecoa novamente, trazendo-me do abstrato ao concreto. Ela prepara o bote porém, curiosa, aquieta-se seguindo, com muita atenção, o percurso da bolha de suor, descendo e, finalmente, equilibrando-se na ponta do nariz, balançando perigosamente, ali, no final do órgão olfativo, desfazendo, assim, o triângulo que havíamos formado olho no olho. Mirando a bolinha de água, inexplicavelmente, ela começa a mostrar e a esconder, em movimentos rápidos, retilíneo-alternativos, sua língua preta, finíssima, bipartida, num nervosismo mortal. A gota balança, ameaçando cair, fazendo-a agitar ainda mais o chocalho estridente. Juro que tentei de tudo para imobilizar a bolinha salgada, mas o arfar da respiração não ajuda. Ela oscila hesitante e aquilo irrita minha companheira. E, agora? Súbito, a minúscula esfera se solta e começa a cair, lentamente, lembrando-me um filme antigo, “Bonnie and Clyde – Uma Rajada de Balas”, com o Warren Beatty e a Faye Dunaway, se não me engano. Como se só esperasse isso, ela retesa os músculos do pescoço, recua a cabeça para trás, encosta-a na parede, segue a queda, morosa, brilhante, toma impulso...
          Mas afinal o que estou fazendo aqui, dentro desta cova redonda, na frente de uma cascavel?
          Quem me amarrou assim e por quê?
          Onde estou?
          Uma chácara? Um sítio? Fazenda? Quem me trouxe até aqui? Quem seria o proprietário? Espere. Estou ouvindo vozes não muito distantes (220 ou 230 m):
          – Pra mim! pra mim!
          – Corta agora, corta!
          – Na rede não, Carlos!
          – Pegue o saque deles, pô!
          – Cuidado! Esse cara saca bem!
          Vôlei. Estão jogando vôlei. Um clube, talvez? Se for particular, deve ser de alguém com alguma posse evidentemente. Tem piscina...
          – Mergulhe, Tom!, churrasqueira, (Senti, por segundos, cheiro de carne assada) essas coisas. E se eu der um grito bem forte? Não. Minha sentinela não gostaria. Morte certa. Será que não vem ninguém pra estes lados? E mesmo que venha, dará tempo? O anfíbio peçonhento está nervoso. Minha presença o irrita.
          Um momento. Oh, Deus! Estou ouvindo passos, macios, pois toda a área, à volta, é de grama verde, fofa, bem cuidada. Quem seria? Estarei salvo, por fim? E se o monstro se assustar com essa outra presença? Esse perfume... Claro. É a colônia da Emília. Logo, ela também está aqui, com os nossos filhos, Pedrinho e Virgínia. Aleluia! Ela mata a víbora, de alguma maneira... Mas o que aconteceu? O aroma parou a alguns passos (mais ou menos 3 metros). Impossível calcular com precisão. A grama amortece os passos.
          Não posso fazer um movimento sequer. Minha vida depende da fixidez total. “Um corpo só está fisicamente imóvel quando...” preciso parar com esses pensamentos matemático/abstratos. O melhor mesmo é aceitar a proposta daquela empresa e... Mas os meus neurônios, à velocidade da luz, (300.000 km por segundo) lutam arduamente para entender por que minha mulher parou e está imóvel a três metros? O que estará esperando? Claro, deve estar petrificada, observando e estudando uma maneira de me ajudar. Afinal minha situação é desesperadora.
          Suas atitudes, ultimamente, andavam estranhas. Ela vivia me perguntando sobre o seguro de vida que eu renovei recentemente. O Jorge, nosso amigo, solteirão, não saía de casa. Por qualquer motivo lá estava ele. Sempre sozinho. Sem namorada, ninguém. Será que eles tramaram alguma coisa? Impossível. A Emília não tem cérebro para isso. Mas o Jorge... Inteligentíssimo, estava até terminando sua tese de mestrado. Lembro-me até de ter corrigido alguma coisa... Não, não, estou sonhando, delirando.
          A pequena aragem aromática moveu-se. Vinha em minha direção. A parceira, atenta, sentiu também o cheiro gostoso da colônia, ergueu um pouco mais a cabeça, como se espiasse, (ou aspirasse?) o perfume e aquietou-se um pouco. O guizo sossegou. A paz momentânea diminuiu as batidas do meu coração.
          Volto a pensar... (única alternativa naquela situação) acho que eles estavam esperando apenas o bote mortal para me retirarem do cubículo. Li uma vez, não me lembro onde, que a picada da crotalus injeta na vítima um forte veneno, cuja ação é simultaneamente neurotóxica e hemolítica, produzindo perturbadores efeitos tóxicos no sistema nervoso e, paralelamente, destrói os glóbulos vermelhos do sangue. Se não houver um antídoto, em vinte minutos a paralisia é total, e a morte iminente.
          A voz de Jorge (cinco passos; dois além dos dela, portanto) tirou-me do devaneio científico e ecoou claramente mortal:
          – Já terminou tudo, Emília?
         – Ainda não, Jorge.
          – Como, ainda não?
          – A cobra tá parada na frente dele
          – Parada? Fazendo o quê? Não é possível.
          – Venha ver, então?
          – Não quero ver nada. Resolva isso de uma vez.
          – Calma, querido. Vou dar um jeito agora mesmo.
          Então senti o perfume aproximar-se, envolvente: um metro... 70, 40, 10 centímetros. Ela está acima da minha cabeça. Não posso vê-la e, por ser meio-dia, nem mesmo sua sombra. Compreendi tudo. Eles devem ter posto alguma coisa no meu copo. Idiota que eu sou. Depois que a cascavel fizesse a sua parte, eles retirariam o meu corpo, colocá-lo-iam entre as árvores do pequeno bosque, (uma minúscula parte é visível daqui).. Penso que, se erguesse um pouquinho mais a cabeça poderia vê-lo por inteiro. Mas, naquela circunstância, erguer-me era uma missão impossível. Em seguida chamariam a Polícia, diriam que eu morri picado de cobra. Deve ter muitas por ali. Insinuariam também que eu estava bêbado. Que bebi demais no almoço, etc. Não, nada disso está acontecendo. É que eu gosto muito de filmes policiais e de terror, principalmente destes, de preferência baseados nos livros do Stephen King. Ela estava abaixada às minhas costas, quase encostando os sapatos (pretos, de saltos baixos, 4 cm, número 36) na minha cabeça. O que estaria fazendo? Nenhum ruído. Misturado à colônia o perfume natural, característico, que toda fêmea exala, produzindo a química que atrai os machos. Feromônio, se me não engano. A mistura feliz desses odores lembra-me, (estúpido!) a mulher que eu amei um dia.
          Uma batida de mãos, forte, vigorosa, estalou sobre a minha cabeça(cheguei a sentir a deslocação do ar, à velocidade de...), gelou minha espinha. A garganta secou instantaneamente, árida de medo. O coração disparou. O guizo da serpente, explodindo, gelou-me. O sangue começou a correr desesperadamente, tentando escapar das veias e artérias. O baque seco desviou o olhar da dona do guizo para o alto, mas retornou rapidamente, mirando agora minha veia jugular, que na certa pulsava loucamente e lançou-se com violência contra o meu pescoço.
          Tive coragem e sangue frio suficientes, para observar, nesse décimo de segundo, durante o curto trajeto, que a bocarra, foi se abrindo, mortífera, até sua totalidade, (quase 180º) sibilando, os caninos curvos, compridos (cada um com 9 a 11 mm de comprimento), brancos, finos, mortíferos, úmidos, faiscando à luz, cresciam assustadoramente, e a língua... a língua... meu Deus!, onde foi parar a língua bipartida?

Albino Júnior

Classificada em 1º lugar no Concurso Mapa Cultural Paulista, 2003 – 2004, SP

« Voltar