O MALTRAPILHO

Henrique era uma criança como outra qualquer.

Aprendeu desde cedo a amar a natureza, os animais e a respeitar os amigos e os mais velhos. Tinha uma educação distintiva com os princípios que seus pais lhe ensinaram.

Desde bebê passava o maior tempo na escola. Seus pais eram médicos e trabalhavam muito. Nem sempre tinham um horário que pudesse poupar o garoto da rotina. Mas nem por isso sentia-se abandonado, pois, todo o tempo que passavam juntos, era marcado por bons momentos de carinho.

Aos sete anos foi transferido da escola infantil para uma escola maior. Iniciaria o Ensino Fundamental. Passou a freqüentar a escola no período da tarde e as manhãs eram livres para se dedicar as tarefas e ao cachorro que ganhou de presente no dia do seu aniversário.

À tarde, quando saia da escola, sempre escapava das mãos de Lalinha sua babá, para correr atrás dos pombos que se espalhavam pelo pátio da escola. Sempre que possível, trazia escondido dentro da mochila um punhado de milho para atrair às aves.

Na frente da escola havia uma praça com um enorme jardim, e ele fazia questão de brincar com o jardineiro e acenar para o homem maltrapilho que ocupava sempre o mesmo banco da praça. Tinha muita pena daquele homem. Volta e meia pedia para que seu pai ajudasse o pobre.

O homem sempre agradecia com um sorriso, apertando em seu peito um pedaço de papel.

Aquela cena se repetia todos os dias e por muito tempo.

Henrique sempre perguntava a seus pais o porquê daquele homem, como outros que se viam pela cidade, não terem onde morar. Não concordava que as pessoas pudessem viver nas ruas.

Seus pais, muitas vezes, ficavam sem respostas diante dos argumentos do garoto.

Os anos se passaram. Henrique terminou o Ensino Médio e se preparava para prestar o vestibular. Incentivado pelos seus pais, resolveu que também seria médico.

Foi aprovado em uma Universidade em outra cidade. Isso deixou seus pais angustiados, mesmo sabendo que ele estava preparado para o mundo.

Certa noite, o rapaz chegou antes do horário habitual, e sem querer, pôde ouvir uma conversa entre seus pais. Ficou sabendo naquele momento, que não era filho legítimo do casal. Ouviu sua mãe dizer entre lágrimas que ele tinha que saber a verdade para conhecer a sua história. A revelação lhe deixou atordoado.

Quando seus pais o perceberam, se surpreenderam com a sua reação. Atirando-se nos braços dos pais, agradeceu-lhes todo o carinho e amor com que foi criado. Suplicou entre lágrimas que gostaria muito de saber o que havia acontecido com seus pais biológicos. Neste momento, seus pais se deram conta de que o menino havia crescido e se tornado um homem de verdade.

Seu pai, com os olhos marejados, revelou-lhe que sua mãe havia morrido em seu parto e que seu pai desesperado e também doente e desempregado, não tendo condições de criar o filho, entregou-lhe ainda bebê para ser adotado. A mãe completou que alguns dias depois, o homem voltou para pedir uma foto do filho. Depois deste dia, nunca mais foi visto na cidade. Aquela imagem sempre atormentou o casal.

O rapaz chorou muito de tristeza e também pela sorte que teve de ter sido amparado por uma família tão boa.

Alguns dias depois, ao passar em frente à escola, observou na esquina, o mesmo mendigo que sempre via desde que era criança. Lembrou-se que ele o acompanhava desde o tempo da escolinha. Nunca se deu conta disso. E a lembrança daquele homem de barbas longas, desfigurado pelo sofrimento, sujo e mal vestido, o intrigou.

Foi para casa pensando naquela figura sofrida que anos a fio sempre esteve de alguma forma, presente em sua vida. Decidiu que no dia seguinte o procuraria para saber mais sobre ele.

No dia seguinte, não o encontrou. E no outro, também não...

Não contendo a ansiedade, resolveu perguntar em uma banca de frutas, próxima ao lugar em que o homem sempre esteve.

Atravessou a rua rapidamente na intenção de obter alguma informação.

Um senhor de meia idade veio ao seu encontro para lhe atender e ele perguntou:

- O senhor é dono desta banca?

- Sim... Já há algum tempo!

- Por um acaso o senhor sabe do paradeiro daquele homem maltrapilho que sempre andava por estas bandas?

- Sim! O homem respondeu prontamente. - Sempre ficava neste banco em frente! - Na madrugada de segunda-feira foi encontrado morto, neste mesmo lugar.

- Morto? O rapaz perguntou assustado...

- Sim. - Pobre coitado!

- O senhor sabe quem era ele?

- Não! - Era um homem muito estranho... - De pouca prosa... - Vivia com o pouco que lhe davam. - Não pedia nada a ninguém...

- Nas suas coisas encontraram esta foto. - Ele a trazia consigo. - É de uma criança. - Quando morreu ficou caída em seu peito.

Henrique olhou para a foto e reconheceu aquela criança. Deixou que ela caísse de suas mãos e se juntasse aos pedaços de si próprio, no chão!

Silvia Trevisani

2º lugar Mérito Regional em prosa no V Festival Nossa Arte da Prefeitura da cidade de Itatiba/SP, 2006 e
Menção Honrosa a nível nacional no Concurso Literário 10º Prêmio Missões / Roque Gonzales/ RS, 2007.

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