Calota Boa Quina

I – PR: Um Príncipe Regente na Bahia

 

“A ti trocou-te a máquina mercante / Que em tua larga barra tem entrado /
a mim foi-me trocado, e tem trocado / tanto negócio e tanto negociante”
Gregório de Matos – a Cidade da Bahia (cerca de 1680)

                       Como cronicar acontecimentos idos há séculos passados, mui distante desta conturbada e moderna realidade? Eu disse moderna? Bah! Moderno foi o Príncipe Regente (nosso grande PR) que, fugindo de um alucinado Monsieur chapeludo em companhia de uma progenitora ensandecida, uma desvairada (descontrole hormonal?), um cordão de bajuladores, vários asseclas imprestáveis e do restante de uma família que não poderia, sob hipótese alguma, ser considerada “normal” (embora talvez nos dias de hoje pudesse ser taxada de exemplar, inclusive), aportando em solo firme de sua nova pátria mãe gentil, Terra Brasilis, adiantou-se a brincar de Banco Imobiliário (claro, pois àquela época ainda não havia sido inventado o vídeo-game nem os jogos de futebol ou sequer TV por assinatura).
                       Se isso fosse aos dias de hoje, ao desembarcar na Bahia, à sua espera, a morena-mucama-de-angola toda perfumada de água-de-cheiro, turbante de festa, roupa de lavagem da escadaria do Bonfim (eu disse Bonfim, e não Teatro Castro Alves), logo se dando intimidades de “ vem cá meu rei, venha no colo de mainha...” ; a mesa farta de acepipes exóticos como xinxim de galinha, sarapatel, vatapá, abará, acarajé, moquecas variadas; “ vai uma caipirinha, meu tio?” ; sobremesas impensáveis em terras d'além mar, tais como frutas tropicais (mangaba, coco, banana, laranja, abacaxi, graviola); e doces angelicais como baba-de-moça, quindim de Iaiá, cocadas (preta, branca, mulata); “ moleque, traga cá esse ioiô” . Acolá dona careca, após brigar com piolhos, resolve enfim aderir ao turbante plebeu devidamente redesenhado por modista de sua confiança. Como conseqüência do farto banquete real, extensas cólicas digestivas e embaraços gastrointestinais. Para aliviar o mal estar de sua majestade, nada como uma boa atiçada folia atrás do trio elétrico, descendo pela Ladeira da Preguiça até a Cidade Baixa, numa memorável Festa de Largo, prenúncio e ensaio para o carnaval pagão. Tal festança não seria somente um deslumbre do colonizado frente à pompa da metrópole, pois, inserido no contexto, o intento político no meio do folguedo. E, para disfarçar tal interesse, contratariam uma família de nobres trovadores: Dom Caetano, Dona Maria Bethânia e Dona Canô (a maestrina), para entoar músicas tropicais, tropicanas e tropicalientes. Oxxiiii... Que zorra, meu rei!
                       Ta, Vossa Majestade cansar-se-ia de tanta farra e do tal beija-mão (outra invencionice soteropolitana) e embarcaria como d'antes para o Rio de Janeiro, após notar o calendário estampando em góticas letras manuscritas o mês de fevereiro. Por certo ele gostaria de ver as manifestações populares em lugar mais nobre, talvez num camarote da Sapucaí. Mas, antes da partida, Dom João VI, resolvido, após dias de elucubrações filosóficas, no dia 28 de janeiro, decide: “vamos abrir os portos todos dessa terra, para que possamos trazer cá um bom bacalhau e azeite de boa procedência, que este tal dendê arrebentou-me todo, ó raios! ”.
                       E o povo, apesar de sabedor da intenção do Regente em retomar a viagem, novamente tentaria o mesmo golpe baixo (pieguice malevolente tipicamente baiana) com uma poética súplica sonora redigida por Balthasar da Silva Lisboa, irmão do futuro visconde de Cairu, o primeiro livre-cambista do Brasil: [Salvador] “ foi a primeira terra do Brasil povoada, e a sua capital, e foi também a primeira que saiu a receber seu Soberano (…) o seu incomparável porto, o mais belo do mundo, está como no centro das colônias de V.ª que dominado a África lhe abre uma comunicação tanto mais fácil com a Ásia.
                       Enquanto isto o povo nas ruas a cantar:

                       “Meu príncipe regente / Não saias daqui / Cá ficamos chorando / Por Deus e por ti…! “.


II – PR: Ponha-se à Rua, ó pá!

                       O Príncipe Regente, dizem as más línguas, mareado e nauseabundo em viagens marítimas, não consegue embarcar a tempo na nave real, devido ao caos aéreo nacional; vê-se então obrigado a trafegar por mar mesmo, o que atrasa a viagem e o faz perder toda festança e orgia do lindo e internacional carnaval da então ainda Cidade Maravilhosa.
                       Finalmente chega ao Rio de Janeiro, a nova capital do Vice-reinado, em 7 de março. A recepção é calorosa, toda a população sai às ruas para receber festivamente a corte, num entusiasmo indescritível . Dom João VI, extasiado, resolve admirar a bela paisagem e ouve o clamor dos moradores: "Ô tio, libera o freio de mão da ‘liteira' aí que é pra caber mais na vaga!”.
                       
Na falta de palácios e palacetes para hospedar a trupe, a sociedade local – extremamente solícita e organizada – contata a CUM (Comunidade Unida dos Morros), que resolve instalar o Príncipe e a corte nos melhores casarões da província. Em sua homenagem enviam artistas populares, conhecidos como “pichadores de muros” , para que decorem as finíssimas moradias com um enorme PR em adornadas letras monumentais. Está certo que estes pintores renascentistas apresentam predileção por letras que lembram caracteres gregos, mas, fazer o quê, se o sistema de ensino já a essa altura constitui-se verdadeira bazófia, e os professores de geografia se revoltam fazendo greve por melhores salários e contra as constantes mudanças nos mapas?
                       Assim que se instala, correm visitá-lo nobres em busca de expansão de seus domínios. Um insiste em delinear seu território com tinta vermelha, outro, com amarela. Dom João concorda e determina que cada um desenvolva suas atividades comerciais e de liderança atrás das linhas coloridas, nos morros; porém, fica muito bravo, pois rabiscaram todo o mapa e ele perde o jogo, conseqüentemente, algum tempo depois.
                       Conforme o historiador João Garrido Pimenta, professor da USP (Universidade de São Paulo), Dom João VI tenta preservar a rotina que mantinha em Portugal: "Seu dia divide-se em despachos com ministros, recepção de súditos e aparições públicas". Esses despachos (hábito adquirido em sua rápida estada pela Bahia) levam a uma novidade em termos de comércio: a elevação do preço das galinhas d'Angola, agora encontradas com ágio, no mercado negro. Temos aí o início de uma reforma cultural ampla e determinante para o progresso do Brasil: com tantas novidades, a família real consegue mudar hábitos religiosos, alimentares, convenções sociais e até a moda. Responsável por estes dois últimos itens, a senhora Dona Carlota Joaquina, uma espanhola de sangre caliente, que, além de ser copiada em seus trajes, lança os alicerces da emancipação feminina, enchendo de espanto e inveja as mais formosas (que, pelas pinturas e descrições, supõe-se serem todas as demais mulheres do Reino, quiçá do mundo!?), inaugurando a prática do casamento aberto, bem como a união das classes sociais. Coisa de louco, imaginar a esposa de um Príncipe aportando em terras semi colonizadas e visitando, inclusive, os morros e ensaios das escolas de samba: “Sua majestência toca a castanhola e ensino o tamborim pra tu, ou quem sabe o ronco da cuíca, madama?”
                       
Mas nosso herói d'além mar faz mais, muito mais, em detrimento à nossa mui amada terra tupiniquim: permite a instalação da Imprensa, funda a Marinha, a Academia Militar e um Hospital também militar (classe unida, essa, desde o princípio...). Concomitantemente cria uma fábrica, duas escolas de medicina, além da Biblioteca Real, Jardim Botânico, Academia das Belas Artes e o Banco do Brasil. Pronto, aí começa a bagunça, propriamente dita, pois ele se põe autografar a torto e direito, com uma magnífica pena de pavão, acordos e empréstimos mil com uma sociedade secreta mundial de muito poder, a FMI (Fundação Monetária Inverídica). Como Portugal estivesse em débito em 175 mil libras à Inglaterra, esta só queria saber quem ia pagar a fatura. Ele então se compromete: os brasileiros, claro. Tem início então a DÍVIDA EXTERNA, que só faz crescer, administrada pelo gênio financeiro dos Rothschilds.
                       A abertura dos portos (lá vem a Carta Régia de novo!), em compensação, mostra-se um verdadeiro desastre para o país, após breve tempo, porque anula outra decisão recém tomada: a permissão para o desenvolvimento da indústria no país. As importações matam a indústria nacional – mas, pensando cá com meus botões, o que seria do Paraguai, não fosse isso?. Temos aí a explicação histórica para o uso do termo “baianada ”, uma verdadeira tamancada nos conterrâneos brasileiros da Bahia de Todos os Santos.

III – PR: No Paraná, tomando LEitE quEntE

                       A bola da vez é Diamantina, com suas riquezas em ouro e pedras preciosas depauperadas pela corte, enriquecendo cada vez mais nossos colonizadores e seu séquito de fidalgos e apadrinhados. Antes do descobrimento do ouro nas Minas Gerais, quando o descobriram em Paranaguá, os portugueses chegam às pencas (ou seriam tamancas?) para explorar não só o litoral paranaense como também vão se estabelecendo no interior, que começa a ser ocupado por famílias abastadas, e passam a ser utilizadas na criação de gado nas planícies com farturas de pastagens e inumeráveis cursos d'água.
                       Com a vinda da família real, emigram para o Brasil, em grande quantidade, portugueses arruinados com a invasão da península: legiões de serventuários, de letrados, de militares, de favoritos e protegidos de toda a ordem, enchendo as repartições. Para acomodar todo esse mundo de Joaquins, Manuéis e Marias, a corte vai multiplicando as sinecuras, sem dissimular que os cargos criados se destinam aos reinóis e não aos nativos. Tudo isso somado ao desenvolvimento da mineração e outras atividades que geram lucros ao Vice-Reinado, faz com que cresça principalmente a demanda por alimentos e meios de transporte.
                       As grandes criações de gado e de eqüinos, localizadas no extremo sul, são transportados para Sorocaba através do “Caminho de Viamão”, que passa por Santo Antonio da Patrulha, Campos de Vacaria, Campos de Lages, Campos Gerais, Itararé e Sorocaba. Os Campos Gerais são o trecho mais importante dessa estrada, provavelmente a primeira com pedágio do Brasil (a RODONORTE agradece, por sua preferência). Traçada em 1731, pelo espertíssimo cidadão Cristóvão Pereira de Abreu (que encheu a burra cobrando impostos sobre a passagem das mulas carregadas de produtos e pelo gado), esse projeto de rodovia (ou mulovia, gadovia, vacavia, tropeirovia?) resultou de uma simples equação: uma mula equivale ao trabalho de dez escravos. As estradas valorizam as regiões por onde passam. É o que acontece com a “Estrada dos Tropeiros”, que em pouco tempo leva a civilização para toda a zona de “Cima da Serra“ por onde passa, fazendo com que suas adjacências sejam ocupadas e vejam só a quantas anda o preço de um imóvel na região! Inflacionaram o mercado imobiliário. Ai, essas mulas! Ai, essas vaquinhas!”
                       Ao mesmo tempo, a profissão de tropeiro anda muito disputada, embora não tenha registro em carteira ou garantias empregatícias. Mas, com a taxa de desemprego para nativos em alta, o que fazer? Muitos pousos de tropeiros dão origem a importantes cidades, tais como Cruz Alta, Soledade, Carazinho, Curitibanos, Lages, Castro e tantas outras. O tropeiro estabelece um verdadeiro Corredor Cultural. O historiador paulista Alfredo Ellis Jr. escreve que talvez a Estrada do Rio Grande a São Paulo seja a rota de maior importância na história do Brasil, pois sem ela não haveria o ciclo do ouro, o ciclo do café e nem a unidade nacional teria sido levada a cabo.
                       Durante sua estada no Rio de Janeiro, convites não faltam para que nosso vice-rei conheça de perto as diversas riquezas do sul da Colônia. Chegam informações aos ouvidos reais que a costa é agradável, Curitiba é um lugar moderno em pleno desenvolvimento e a Serra da Graciosa é um lugar aprazível, bem como os planaltos e o clima, um tanto parecido com o europeu, devido à característica e diferenciada vegetação, o que deve agradar à corte. Dom João VI, curioso e cheio de interesses por talvez mais uma fonte de rendas na Província, solicita que um desses tropeiros vá vê-lo pessoalmente, a fim de explicar em detalhes o que vem a ser essa nova atividade (que mais lhe parece contrabando de animais, e o executor, se português, seria chamado de “executivo de fronteira ”) .
                       O tropeiro, num sotaque novo e estranho, prepara e descreve, numa espécie de acampamento improvisado na praia de Copacabana, uma carne de charque e um autêntico barreado, acompanhados de Mate na cuia. Mas Vossa Majestade prefere mesmo um bom galeto acompanhado de uma purinha ( ai, a marvada da pinga! ), o que usa como desculpa para não se empenhar em tal aventura turística.
                       Os moradores dessas bandas resolvem se desenvolver de forma inusitada, e convidam vários povos, pelo sistema de “mala direta”, para conhecerem o sul. E como conseqüência da abertura dos portos (olha a Carta Régia aí de novo!), após um tempo começam a chegar (de navio) europeus vindos de regiões bem diferentes: italianos, alemães (até do Volga!), polacos (da Poláquia?), holandeses, árabes, russos e outras etnias, e, juntos, formam um novo povo e uma nova cultura, buscando uma identidade aristocrata retratada em sobrenomes tradicionais aos domingos, nas páginas sociais dos jornais locais.

Thaty Marcondes

1º lugar no Concurso de crônicas "200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil", organizado pela Academia dos Campos Gerais/MG, 2008

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