Não terminar a carta
“A beleza é outro perfil do sofrimento”, escreveu Cecília Meirelles. Mas precisamos da beleza, para nos sentirmos imensos. E sabemos: tudo o que é belo, como tudo o que nasce, envelhece e morre. Assim é preciso envelhecer com sabedoria – não indo a oblívio antes do dia da passagem. No poente e no nascente viajamos todos, não só os que encanecem, nos dias crepusculares – mas até mesmo os que nascem. Pois que mesmo antes de ver a luz deste mundo, já tinham começado a morrer.
Vieram de outras vidas e mortes, de outras paisagens e mundos inefáveis aos sentidos do humano. Estão em continuidade do processo de renovação e aprendizagem. Pois o ofício de viver é uma vasta viagem da qual não temos lembrança do começo, nem podemos vislumbrar o seu termo.
Importa, contudo, antes de escutar o assovio das Parcas, e de sermos confinados ao frio do mármore, recordar, com ansiedade, os amores que se foram, mas que fizeram brilhar nossos olhos. Puseram vida na vida, dando impulso e paixão à jornada do existir. Viver é assumir o compromisso de ir escrevendo uma carta a um destinatário invisível aos olhos. Nesta missiva se escreve a ternura, o sacro ofício no milagre de estar vivos.
Não devemos colocar jamais um ponto final nesta missiva – pois isto seria dizer ao mundo o sobredito de que não temos nada mais a dizer. Um trecho do romance “Um vagabundo em surdina”, do escritor norueguês Knut Hamsum, descreve o sentimento crepuscular de quem, sucumbindo ao peso dos anos, acredita nada mais ter a dizer ao tempo e ao lugar em que vive: “Quando chega a velhice, deixamos de viver o presente e passamos a viver de recordações. Chegamos como uma carta ao seu destino. Deixamos de ter caminhos a percorrer. Resta-nos, unicamente, saber se a nossa passagem pelo mundo desencadeou turbilhões de penas e alegrias. Ou se a nossa vida nos deixou uma única sensação”.
Salomão Sousa transcreve este trecho em uma crônica de seu livro Momento Crítico , e acrescenta: “Alguma manobra temos que engendrar para enganar a velhice, não deixar que ela bloqueie o caminho a percorrer. A manobra consiste em continuar a carta, para ser encaminhada ao seu destino o quanto mais tarde possível. Pois, se dizemos: “cumpri minha missão”, isto quer dizer que a carta foi entregue. (...) Ainda recentemente, visitei um casal idoso, que teve participação espiritual importante em minha vida.
Ele resistia, com a carta na mão – falou sobre política, puxou lembranças, mostrou-me detalhes de seu meio ambiente. Quanto a ela, não podia mais ousar. E não queria assumir isto, apesar de poder. Ela não levantava o rosto para mais ninguém, não reagia a nenhuma pergunta ou aos gestos de afeto das pessoas. Naquele instante eu reconheci que ela entregara a sua carta. E fui um dos destinatários de boa parte de seu conteúdo. Logo estaria acompanhando o seu féretro – a última etapa da viagem da sua carta”.
Continuar a escrever a carta, resistir a tomá-la como pronta e acabada, é passar ao universo a mensagem de que tem mais a dar, na parceria com o projeto de Deus. Acrescentar conteúdos é tomar posição perante os dramas e conflitos da sociedade e do mundo – não recusar nada, nem afetos nem desafeições – a tudo responder com sinceridade, assumindo com firmeza e serenidade sua presença no instante ativo em que a vida acontece. É manter-se em abertura para dar e receber amor das pessoas, sabendo que pertencemos todos à grande família humana, e sendo assim, todos são nossos parentes.
Continuar a escrever a carta é abrir largo sorriso, ao acolher e brincar com as crianças, nossos filhos e netos, qualquer criança que encontremos nas praças e ruas. É não se fechar em carranca e azedume, e não se recusar à alegria do que é vivo e mutante. No dizer de C.G. Jung, devemos continuar a dar o testemunho de que estamos vivos, dizendo presente à vida, e dar as respostas que o mundo nos pede, sob pena de ter que nos contentar em aceitar as respostas que o mundo nos oferece.
Brasigóis Felício