REVERÊNCIA PELA VIDA

Quando eu era jovem, nos anos 40 e 50, a grande floresta de araucárias do sul do Brasil lá estava, primordial, quase intacta. Era uma das florestas mais majestosas do mundo, tão magnífica quanto as da região do Pacífico Norte, na América do Norte, ou as florestas de uma das regiões do mundo mais fantásticas que conheço, os fiordes, no sul do Chile.

A floresta de araucárias não existe mais! A floresta do Pacífico Norte também quase desapareceu e começou a destruição em massa no Chile. As grandes florestas da Sibéria são hoje vítimas de um ataque feroz, as florestas tropicais do Sudeste Asiático, da Nova Guiné e da Austrália estão próximas do fim. Apesar de a Amazônia continuar oitenta por cento intacta, o ritmo da devastação está voltando a crescer. Não existe controle e, com exceção do Governo do Estado do Amazonas, não há vontade política para detê-la. Mas a obliteração de todas as florestas primárias do mundo é apenas uma parte do comportamento destrutivo da nossa atual cultura industrialista global. Todas as selvas remanescentes estão sendo destruídas, todos os sistemas de sustentação de vida estão desestruturados. É verdade que todas grandes civilizações antes da nossa - romana, grega, maia, asteca, babilônia, chinesa e outras - foram até certo ponto predadoras do meio-ambiente. Algumas sucumbiram por causa disso, mas a destruição era local ou regional. Hoje ela é global, atinge a menor ilhota no meio do oceano.

Qualquer pessoa informada sabe que nossa atual situação é insustentável. Foi disso que tratou a Conferência Rio-92. Sabemos como lidar sustentavelmente com alguns recursos, mas com outros insistimos em fazer o contrário. O pecuarista tradicional dos Pampas do Rio Grande do Sul, da Argentina e do Uruguai maneja seu gado da maneira como um investidor sábio aplica sua fortuna. Gasta apenas os juros e mantém o capital, aumentando-o sempre que possível. Assim, o pecuarista que possui, digamos, mil cabeças de gado, venderá entre cem e cento e cinqüenta por ano. Selecionará seus animais para obter mais saúde e produtividade e protegerá e aperfeiçoará suas pastagens. É por isso que o Pampa ainda é uma das paisagens mais preservadas e belas do mundo.

Algo parecido poderia ter sido feito com a floresta de araucárias. Ela ainda poderia existir, bela como sempre. Poderíamos ter extraído seletivamente, retirando a cada ano o equivalente ao crescimento de um ano. Se decidíssemos usar árvores de duzentos anos, deveríamos ter colhido uma de cada duzentas árvores; das árvores de cem anos, uma de cada cem; e das de cinqüenta anos, uma de cada cinqüenta, a cada ano. A floresta não necessitaria de ajuda humana para se regenerar. Mas os madeireiros não enxergavam a floresta de modo como o pecuarista vê e maneja seu gado. Viam-na como uma mina, e não era deles. Então extraíram o que puderam, o mais rápido possível, e o fizeram da maneira mais esbanjadora. Isso acontece hoje com todas as florestas remanescentes no planeta, e é como tratamos a maioria de nossos recursos naturais.

Por que a sociedade permite esse tipo de rapina do bem comum? Há uma falácia fundamental em nosso atual pensamento econômico:

Os governos gostam de confundir os interesses empresariais com os interesses da Nação. Hoje, após o colapso do que se chamou socialismo, estão reavivando, sem questionar, o postulado proposto por Adam Smith, segundo o qual a soma total dos interesses privados irrestritos, de certa forma, por meio de uma "mão invisível", transforma-se em benefício para todos. Mas esse postulado é errado, basicamente errado, quando se aplica ao nosso trato com a Natureza. Por exemplo, cada uma das frotas pesqueiras deseja extrair a maior tonelagem de peixe que puder apanhar. Por isso elas continuam aperfeiçoando seus métodos, a ponto de, ao encontrar um grande cardume, atrair eletronicamente para suas redes até o último peixe. E isso é bom para o oceano ou para a humanidade?

Baseado na confusão de que o benefício público surge automaticamente dos lucros imediatistas de indivíduos ou empresas, os governos fazem um tipo de balanço que jamais ocorreria a um executivo em sua firma. O índice usado para avaliar e comparar o progresso, o PNB - Produto Nacional Bruto - mede apenas o fluxo de dinheiro, sob a ingênua suposição de que a felicidade geral aumenta com o crescimento da renda média, sem fazer distinção do que todos os diversos rendimentos causam à sociedade e ao mundo como um todo. Mas esse índice nada nos diz sobre a verdadeira riqueza nacional, nada nos diz da justiça social ou da sustentabilidade de nossos sistemas econômico, agrícola e industrial. Pelo contrário, o índice cresce com o aumento da devastação. Já ouvi pessoas poderosas no Brasil dizer que a madeira da Amazônia vale tantas centenas de bilhões de dólares, por isso deveríamos vendê-la o mais depressa possível; e o mesmo para todos os minérios do subsolo.

Se realmente desejarmos um futuro duradouro para nossos filhos e descendentes, devemos nos colocar muitas questões - sobre nossa economia e nossa tecnologia, assim como sobre nossa cosmologia.

Um primeiro passo vital seria os governos começarem a fazer para o país o tipo de contabilidade que os empresários fazem em suas companhias. Eu mesmo sou um pequeno empresário; minha contabilidade soma todos os rendimentos e aquisições e subtrai todos os custos e perdas. Qualquer diminuição dos bens materiais, seja pela venda ou pela redução de valor, pelo envelhecimento ou desgaste, também é deduzida. Agora, se olhássemos para nossa empresa do modo como os governos o fazem, estaríamos somando o rendimento com os custos, desprezando as perdas materiais. Poderíamos ir à falência e sentir-nos felizes!

Quando nós, brasileiros, demolimos montanhas, inundamos milhares de quilômetros quadrados de florestas virgens para produzir alumínio para exportação, devastamos dezenas de milhares de quilômetros quadrados de cerrado para produzir carvão vegetal para fazer ferro gusa, está correto somar a renda obtida em moeda estrangeira, mas também deveríamos ter um balanço nacional em que deduzíssemos a perda das florestas, a perda dos minérios nas montanhas, a perda do ganha-pão do seringueiro que hoje vaga nas favelas das grandes cidades, o genocídio das tribos indígenas extintas e muito mais. Com esse tipo de verdadeira contabilidade nacional não haveria muitos motivos para celebrar.

Se os norte-americanos fizessem esse tipo de balanço, perceberiam que hoje são muito mais pobres do que cinqüenta anos atrás, quando a maior parte de seu petróleo ainda estava no solo, a maioria de seus minérios ainda não fora extraída e em grande parte desperdiçada em orgias consumistas, quando a maioria de suas florestas primitivas continuava intacta, seus rios limpos, etc. Naquela época eles tinham a metade da população atual, muito mais recursos e menos problemas sociais. Os alemães e os japoneses perceberiam que na verdade são países pequenos, superpopulosos, totalmente dependentes dos recursos de outros povos.

Não apenas em nível social, mas também global, precisamos de uma contabilidade que nos diga a verdade. Se permitirmos que a Floresta Amazônica desapareça, não apenas nós, brasileiros, ficaremos mais pobres, mas as conseqüentes mudanças climáticas tornarão todo o mundo mais pobre. Hoje sabemos que isso poderia provocar uma alteração das correntes marítimas capaz de desencadear uma nova era glacial, infinitamente pior que um aquecimento global.

Enquanto avaliarmos o progresso, não em termos da verdadeira riqueza material e social, mas em termos de fluxo de moeda, como no PNB, não veremos problema em aceitar o mais absurdo de nossos atuais dogmas econômicos: que uma economia só é saudável enquanto continuar crescendo. Esquecemos que nossos campos, nosso território, nossas montanhas, nossos minérios, petróleo e gás não crescem, que o planeta não cresce. E, enquanto nossos economistas nacionais, a quem os administradores escutam, continuarem a ser completamente analfabetos em ciências naturais e em tecnologia, eles acreditarão em si mesmos quando pregarem que os recursos são ilimitados, porque não vêem problemas causados pela tecnologia, que novas tecnologias não possam solucionar.

Também se tornou um dogma geralmente aceito, de que dar rédea solta às forças do mercado, e fazê-lo em escala global, resolverá todos os problemas econômicos e produzirá maior justiça em escala mundial. Isto também é uma falácia fatal.

A maioria de nossos mercados é manipulada por subsídios - veja-se o programa do álcool brasileiro -, por impostos, regulamentos, esquemas financeiros que favorecem os grandes às custas dos pequenos, como no caso das agroindústrias e dos camponeses, e muito mais. No mundo todo, as estruturas sociais que surgiram historicamente, organicamente e sistemicamente, estruturas sociais que dão às pessoas um sentido de identidade, um sentimento de aconchego, de segurança e de relativa justiça social, sejam elas camponeses, artesãos, artífices, pescadores, aborígenes, povos tribais nas selvas que ainda restam, quase todas elas, com muito poucas exceções, hoje estão sendo desmoralizadas, desenraizadas, marginalizadas e jogadas às favelas. Este processo irá se tornar ainda pior. Mesmo no Primeiro Mundo, a exportação de empregos para o Terceiro Mundo está provocando grave desemprego e logo causará sérias revoltas sociais.

O mercado, como funciona hoje, incrementa as injustiças sociais, ignora as verdadeiras necessidades das pessoas, vê apenas a demanda expressa em termos de dinheiro. Os que não têm dinheiro nem sequer aparecem no mercado, por mais que estejam necessitados.

O mercado também é cego no que concerne às futuras gerações. É por isso que ele promove a mais desperdiçadora, imediatista e irreversível violação dos recursos não renováveis e leva à destruição dos recursos que poderiam ser utilizados de maneira sustentável, como as florestas e a pesca, sem preocupar-se com o que ficará para nossos descendentes. Talvez seja por isso que há tão pouco interesse em nossa única fonte de energia realmente duradoura, a energia solar. A energia do sol - podemos usá-la ou não - só pode ser aproveitada eficazmente de modo descentralizado, que não concentra poder em alguns poucos, e , mais importante, a energia solar não pode ser roubada das futuras gerações.

Todos os sistemas naturais - e a Vida tem quase quatro bilhões de anos - são altamente dinâmicos, mas estáveis: eles não crescem. Os indivíduos de todas as espécies nascem, crescem, envelhecem e morrem, mas o ecossistema não cresce nem morre quando não é perturbado por outras forças. A menos que nós, humanos, aprendamos com a Vida a ver nossas economias como sistemas dinâmicos, mas estáveis e duradouros, acabaremos por sucumbir. Devemos ainda aprender com a Vida que seus sistemas são estáveis e duradouros porque se baseiam na perfeita reciclagem de recursos e não em seu consumo. Nosso atual sistema econômico baseia-se no consumo da Natureza.

Hoje em dia fala-se muito na importância de se preservar a biodiversidade. Mas a biodiversisdade é vista como mais um recurso, uma necessidade de estabilidade dos sistemas que desejamos explorar, ou simplesmente como uma fonte de novas substâncias químicas, como medicamentos e outras. Não é vista como um valor em si. Nossos pensadores econômicos e tecnocráticos, em sua visão de mundo, antropocêntrica e gananciosa, têm dificuldade em compreender quão única e preciosa é cada espécie, por mais humilde, no contexto da grande Sinfonia da Evolução Orgânica da qual nós, seres humanos, somos apenas parte e produto. Enquanto enxergarmos a Criação apenas como um armazém gratuito, onde a indústria e o comércio podem servir-se indefinidamente de bens, nossa tecnologia cada vez mais agressiva e envolvente tornará inevitável a extinção progressiva das criaturas que convivem conosco, a ponto de mutilar seriamente esse nosso planeta ímpar, Gaia, o único planeta vivo que conhecemos. Gaia não é apenas uma nave espacial que abriga bilhões de seres vivos, a maioria deles dispensável na opinião da sociedade industrial moderna. Não, é um sistema vivo, como um organismo em que tudo está conectado e interage com tudo, que tem sua própria bio-geo-fisiologia e homeostase, isto é, tem um equilíbrio autocontrolado. Nesse sistema vivo, cada espécie é importante e insubstituível, e seu desaparecimento debilita o organismo como um todo.

Nós, seres humanos, devemos parar de agir como um câncer nesse superorganismo. Portanto, precisamos de uma nova ética - na verdade muito antiga - holística e abrangente, uma ética que abraça toda a Criação, uma ética baseada no princípio fundamental, proposto por Albert Schweitzer , de reverência pela Vida em todas as suas formas e manifestações.

José A. Lutzenberger
(Janeiro de 1996)

Fonte: http://www.fgaia.org.br/texts/t-klabin2.html

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