A fábula do racionamento (*)

Era uma vez, um país que tinha tudo para dar certo, mas não dava... Tinha lindas praias, quase sempre poluídas, paisagens belíssimas cobertas por sujeira, condenadas ao descaso, um clima maravilhoso, encoberto por uma poluição que parecia ser contratada pela concorrência. Enfim, tudo andava meio aos tropeços naquele país. Alguns culpavam a sociedade alienada que não cobrava seus direitos, outros diziam que a culpa era dos políticos que só almejavam o poder e, uma vez lá, esqueciam-se das promessas, deixando a todos, inclusive o próprio governo, à deriva. Alguns mais românticos acreditavam que o caos ocorria devido à pouca idade do tal país, achando que após mais uns três ou quatro séculos tudo melhoraria visivelmente. Estes, esqueciam-se de países totalmente reconstruídos, como Inglaterra, Japão, Itália, Alemanha... Enfim, países que sofreram as mais terríveis catástrofes e conseguiram em bem menos tempo reerguerem-se, enquanto que o tal país...

Bem, este, como já disse, andava à deriva. Pessoas de bem já não podiam sair de casa nem para comprar pão na padaria da esquina, pois corriam o risco de encontrar a morte numa bala destinada a um bandido ou a qualquer outro que não fosse ele. Meninos e meninas ao deslocarem-se de casa para a escola poderiam ser assaltados, estuprados, mortos e, quando chegavam vivos ao destino enfrentavam a maratona das drogas, pois em cada rua, em cada portão, parecia haver um traficante disposto a viciá-los. Enfim, era a poluição, o custo de vida, o salário que nunca aumentava, a inflação que antes corria às claras e depois passou a ser embutida e pintada com cores mais amenas. Policiais morriam diariamente só pelo fato de usarem fardas. Quando um policial matava um bandido, a mídia o arrasava e poderia até ser banido da corporação. Se era um bandidão que dava cabo à vida de um policial, aí a mídia dava uma notinha e desejava pêsames. E, se o infeliz errasse um tiro e acertasse um inocente, então... Enquanto isso, os políticos todos se acotovelavam em campanhas cada vez mais arrojadas, um falava mal do outro o outro falava mal do um, todos apontavam os “podres” de todos e o povo, ao invés de perceber que as campanhas pareciam mais um circo dos horrores e, depois da encenação, os atores, digo os políticos, tomavam cafezinho e contavam novidades como grandes amigos, bem, o povo continuava votando no “seu candidato”, que “mudaria tudo” e assim era o caos em eterno subdesenvolvimento.

O país há tempos caminhava em disfarçada guerra civil e já não havia grandes esperanças, quando o presidente, após passar quase vinte anos na vida pública, acordou numa manhã qualquer de outono e declarou, pasmo, que desconhecia totalmente a escassez de energia e estava surpreso diante de uma iminente crise no setor... Mas, até os menos avisados conseguiam raciocinar que, se o país não havia investido neste e em outros setores, se a população aumentava assustadoramente ano a ano e, se não havia nenhum investimento nem em campanhas nem em infra-estrutura, era certo que haveria mesmo que se enfrentar uma grave crise em vários setores, incluindo o energético. Mas o pobre e desavisado presidente foi pego de surpresa e, a partir daí, iniciou-se uma terrível maratona. Como sempre, o povo foi o mais prejudicado, saiu correndo enlouquecido comprando lâmpadas fluorescentes importadas da China, que duravam e iluminavam menos do que prometiam, enquanto fábricas nacionais fechavam suas portas, já que não fabricavam as ditas lâmpadas. Os estabelecimentos comerciais passaram a abrir mais tarde e fechar as portas mais cedo, os turnos diminuíram e lá se foi mais um bando de trabalhadores para a rua, desempregados. E tudo isso regado à ameaça de corte, caso não houvesse uma economia estipulada pela cúpula...

Mas, isso até que teve o lado bom, pois todos, sem distinção, viram-se obrigados a economizar vinte por cento de energia e, finalmente, a tão sonhada igualdade social foi atingida. Foi ai que a família Zé Ninguém sentiu-se tão importante quanto a dos magnatas “Majestic Glamour”. Afinal, todos deveriam economizar a mesma quantidade de energia, eram finalmente, todos iguais. Quer dizer, iguais com diferenças gritantes. Enquanto a madame Majestic retorcia-se em dor ao ter que desligar quinze das trinta lâmpadas de sua sala de estar, comprar aquecedores a gás para seus oito banheiros e desligar seu home theater por cinco horas ao dia, os Zé Ninguém também viam como economizar. Como só tinham um banheiro e já há tempos tomavam banhos curtos na posição verão, só restava abrir mão de alguns banhos semanais. Sendo assim, decidiram que só tomariam banho às quartas e sábados, tal qual loteria e, mesmo assim, não ultrapassariam um minuto por pessoa. A tv foi substituída pelo velho radinho de pilha e todas as noites faziam a única refeição do dia, reunidos à luz de velas. Até que foi uma solução romântica e a família arrebentava de satisfação por exercer sua cidadania.

Desta forma, passaram-se alguns meses, tudo na mesma. Até que, um belo dia, alguém lá da cúpula lembrou-se que era época de eleição. Claro que, se tudo continuasse como estava, a oposição ganharia facilmente as eleições e era preciso fazer algo urgentemente... Então, como sempre, tirou-se uma carta da manga. Fizeram e refizeram as contas e chegaram à conclusão de que, com tanta economia, já era possível extinguir o racionamento. Desde que, é claro, o povo não voltasse a esbanjar tomando banho todo dia ou acendendo duas lâmpadas ao mesmo tempo... Anunciou-se então a grande notícia, em meio a fogos de artifício e a população comemorou emocionada mais uma vitória deste sofrido país. Foi então que pôde-se analisar os resultados do racionamento. A madame Majestic totalmente estressada, tomou um longo banho em sua hidro, depois partiu com toda a família para uma volta ao mundo sem data para volta, livrando-se assim desse terrível pesadelo e de suas marcas. Certamente, seus filhos precisariam de ajuda terapêutica para esquecerem o trauma e ela cuidaria disso tão logo voltasse. Enquanto isso, a família Zé Ninguém verificava o prejuízo: O cachorro de estimação estava com sarna e teriam que decidir quem iria untá-lo de enxofre todos os dias. O caçula tinha pego piolho e a mãe teria que quebrar o cofrinho para comprar-lhe o caríssimo xampú apropriado ao caso. A filha adolescente, privada da tv por tantos meses, sem outra perspectiva na vida, havia engravidado e chorava pelos cantos. O pai, que trabalhava na fábrica de lâmpadas e que fora despedido tão logo a crise se anunciou, renovava as esperanças de ter seu emprego de volta e a mãe pensava, aliviada, que dias melhores viriam, já que, certamente, teria muita faxina a fazer nas casas de suas antigas clientes. Era a esperança de novamente ter um trabalho e uma vida mais digna. Alheio a tudo isso, o filho mais velho ria e chorava ao mesmo tempo, gritando que, finalmente poderia tomar banho todos os dias...

O mais curioso de tudo isso foi a reação do presidente: Ao acordar, sonolento naquele dia, sabendo da repercussão positiva do fim do racionamento, disse que deveriam empenhar-se na campanha, frisando bem o final do pesadelo e prometendo dias muito melhores após a reeleição de seu partido. Contudo, que não baixassem a guarda, pois após reeleito, seu próximo racionamento seria oxigênio. Dizendo isso, virou-se para o outro lado e continuou dormindo...

Lou de Olivier

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(*) Escrito durante o racionamento de energia no Brasil que ocorreu em 2001 e, infelizmente, até hoje atual, pois há previsões de novo racionamento em breve.

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