CURRÍCULO INÚTIL

 Estava me sentindo muito mal. Não sabia em que usar tanto conhecimento acumulado ao longo dos meus trinta e sete anos. Fora humilhado e escorraçado por uma pessoa que nem graduada era. E agora estava ali na fila do seguro-desemprego ouvindo piadinhas, constrangido e indignado. Foram oito anos de total dedicação àquela escola, para de uma hora para outra ceder à vaidade e aos aforismos fora de propósito e conotando escárnio de um déspota balofo e antiquado. Impotente, sem ter o que fazer contra uma decisão pessoal e arbitrária, vítima de perseguição e inveja dos inábeis. Lembrei de meu pai, ele sempre dizia que a nossa família devia abrir nossa própria escola, e era verdade. Eu, meu irmão e minha prima, todos professores, ávidos leitores de Paulo Freire e Piaget, tínhamos competência de sobra para servir a nós mesmos e a quem nos procurasse em busca de socorro educacional. Mas as coisas no mundo prático geralmente tomam rumos inesperados, sempre contrários aos nossos sonhos. Engana-se quem pensa que a vida torna-se mais fácil para aquele que lê e estuda. A vida sempre vai ser difícil para todos, o conhecimento só fornece as armas para a luta na beligerância do cotidiano. O rapaz ao lado disfarçava sua indignação fazendo piadas dele próprio. Diz-se que quando conseguimos rir de nós mesmos estamos preparados para todo tipo de vicissitude, para nunca nos acomodarmos. Como acreditar nisso, se os caminhos fecham-se para poucos? Os que detêm o poder são sempre os mesmos e estão lá porque nós os colocamos. Desalento e desânimo. Um pouco mais a minha esquerda há um rapaz com ar desesperador, estava falando sozinho há instantes, será que ele tem o currículo que tenho? Provavelmente não. Voltei-me para Zaratrusta “... Sou o advogado de Deus ante o diabo, e o diabo é o espírito da gravidade...” não adiantou nada Zaratrusta e seu advocatório, o diabo me demitiu permeado por intrigas que ele mesmo teceu. A fila andava lentamente, havia uma atendente que todos queriam distância. Era conhecida pelo seu descaso e maus-tratos com os trabalhadores. Houve casos de omissão e iminente prejuízo e depreciação do valor a receber por causa dela. Um dia ela mudaria de lado e sentiria na pele o desemprego.

— E você?

— Eu?

— Sim e você?

— Eu, o que?

— O que acha disso?

— O que tenho de achar?

— Sei lá... Estou lhe perguntando para ter idéia do que as pessoas pensam quando estão aqui...

— Não sei... É humilhante...

— O que mais?

— O que mais? Você quer mais do que se humilhar?

— Acho pouco...

— Você acha pouco a humilhação que a gente passa aqui?

— Acho... Acho que é muito mais do que humilhação...

De uma forma ou de outra entendi o que ele quis dizer. E ele tinha razão. Mesmo ele que se auto-patetizava.

— Então me diga, o que pode ser mais do que isso?

— Zombaria...

— (?).

— Tá vendo aquela ali? Todos já sabem que se cair na mão dela é prejuízo, ela zomba da cara dos outros, diz que somos incompetentes, que não queremos nada...

— Não vi, por enquanto, ela dizer isso...

— Ela olha a cara primeiro... Se o cara for assim meio “cabrito entregue”, ela descasca no cara...

— Cabrito entregue?

— É, quando está indo para o abate ele não fica assim, de cabeça baixa?

— É verdade...

— Tem que chegar falando, rindo, mostrando que não tá nem aí, que vai um vem outro, sabe? É assim... Por isso que eu digo que é mais do que humilhação...

— Tem razão...

— Você também estava com cara de “cabrito entregue”...

— Você acha?

— Claro... Ânimo, rapaz, ânimo... Olhe eu já estou com outro trabalho engatilhado para o fim do ano...

— Para o fim do ano ainda?

— É, é que eu tenho que terminar meu primeiro grau...

— Você ainda não tem o primeiro grau?

— Não, você tem?

— Tenho... Sou formado, tenho especialização, e cursos em Educação...

— Aaaah, bom! Fez faculdade, não foi? E tem algo em vista?

— Não...

— Ainda bem que a gente sempre encontra alguém que está pior do que a gente, não é?

— Pior? Por quê eu estou pior do que você?

— Você estudou tanto, tem tanto curso e está aqui, igual a mim... E eu só tenho a sétima série, mas já tenho algo em vista, mesmo que seja para o fim do ano... Tá vendo? Tanto esforço para nada...

Naquele momento a dúvida e a incerteza preencheram o meu eu. Talvez aquele rapaz estivesse certo, para que tenta correria para estudar e se formar? Ali estava eu num banco de condenados. Ao mesmo tempo e subitamente, além de paradoxal à minha dúvida, tive certeza que o esquema social converge para poucos. Não basta ser competente e sabedor da profissão. O sistema exige um gatilho informal, evidentemente longe das formalidades e do praxe convencional.

Só ao ouvir meu nome ser pronunciado e me dirigir ao atendente, percebi a zombaria que a tal moça fazia com os desempregados. Olhava de esconso... Um olho no computador e outro no “Cabrito entregue”. Analisava-o friamente, longe de uma anamnese psico-profissional, mas pelo simples prazer sádico, estúpido e atávico, portanto distante do real poder que não lhe é inerente, de satisfazer-se assistindo à desgraça alheia...

Carlos Vilarinho

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