A cantora careca ostenta uma vasta cabeleira: reflexões psico-antropológicas sobre o conceito de “ciborgue”

Ao longo da história da filosofia já propomos “conhece a ti mesmo”, “penso logo existo”, “Deus morreu”, “somos todos assassinos”, “o inferno é o outro” e, agora, os arautos dos “Estudos Culturais” proclamam: “Nunca fomos humanos”. Há muito que nossas misérias e desigualdades sociais e “alienações” estão suscitando reflexões sobre a crise do humanismo ocidental e sobre os impasses contemporâneos no que tange aos conceitos de “humano” e “pós-humano”. Já fui levado a pensar que desde as pré-históricas relações do “homem” com o que lhe é externo (mundo das coisas, natureza física, outras pessoas, objetos, máquinas, etc.) fomos incorporando tais exterioridades e artificialidades – naturais ou não - (até as presentes cirurgias plásticas, próteses, “piercings”, maquiagens, máscaras, amuletos, bijuterias, clonagens e transgênicos) até ficarmos totalmente invadidos ou impuros em meio àquilo que não nos constitui ontologicamente desde as nossas origens (nossos pecados pós-originais?), até nos configurarmos em artefatos, num amontoado histórico-inteligente de próteses, apêndices, extensões, intenções e pretensões. Sei que é forte e poderosa a resistência acadêmica aos chamados “Estudos Culturais” e os ataques uspianos de Walnice Nogueira Galvão (até há pouco editora da revista cultural D O Leitura da imprensa oficial paulista) a esta proposta de pensamento sobre o “pós-moderno” / “pós-humano” acabam de ser estampados entre as páginas 5 e 11 do caderno Mais da Folha de S. Paulo (edição de 17 de Março de 2002). Talvez em resposta às seis páginas dedicadas a estes “Estudos” no número 79 do Suplemento Literário editado pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais/ Brasil (em Janeiro de 2002) e nas quais li entrevista de Tomaz Tadeu da Silva, organizador da coletânea de textos intitulada Nunca fomos humanos , editada pela belorizontina Autêntica, algumas referências ao manifesto feminista da norte-americana Donna Haraway (e ao seu conceito de “ciborgue”) e frases do tipo “Somos, desde sempre, pós-humanos”, “Os monstros não existem. Nós tampouco: somos tão monstruosos quanto os monstros que inventamos” e “ a história do desenvolvimento de nossas democracias ocidentais não é feita exclusivamente de exclusões indesejáveis, como quer uma recente política de esquerda, mas também de inclusões igualmente indesejáveis, desterritorializações e reterritorializações”. Entenderam, em parte, por que tais “Estudos Culturais” têm desencadeado tamanha indignação nos meios acadêmicos/ universitários? Não sei até que ponto a crítica uspiana Walnice Nogueira Galvão tenha razão ao afirmar que “a universidade tornou-se a reserva dos intelectuais”. Coloco em dúvida tal assertiva devido a medíocre ou pouco expressiva contribuição cultural universitária à presente paisagem social e histórica brasileira. A estéril letargia gerundivo-corporativista acadêmica me leva a suscitar indagações e desconfianças quanto ao perfil qualitativo das mais recentes formulações e / ou pesquisas no âmbito das mais famosas instituições de “ensino superior” brasileiras (públicas e privadas). Criticar os modismos pós-modernos é necessário mas apor-lhes sistemáticas resistências me causa estranheza e passo a ousar posturas como as de Galileu Galillei e de Voltaire. Sem peçonhas. Isto para mim já se tornou desnecessário.

Retornando à questão motivadora deste artigo (os rumos teóricos e metodológicos dos “Estudos Culturais”) proponho que re-encaremos o caráter histórico da “essência” e da existência humana, ou o quanto seja discutível o congelamento diacrônico destes nossos conceitos humanistas medievais, modernos e contemporâneos e até que ponto alguém exista hoje em estado “puro”, sem portar qualquer prótese, complementos, bijuterias, silicone, acrílico, chips, óculos, anabolizantes, drogas ou produtos farmacológicos ou outros produtos interventores em suas compleições fisionômicas ou emocionais ou em suas posturas estéticas cotidianas. A cantora careca não está mais careca, a prostituta respeitosa assumiu novos valores, temos idéias longas e couros cabeludos raspados com máquina zero e os hipopótamos não mergulham mais tão freqüentemente quanto as escavadoras cabeças dos avestruzes em desoladas paisagens da península Ibérica.

Como dizia o inesquecível filólogo Antonio Houaiss, é com polêmicas e debates que configuramos mudanças nas almas e nos perfis culturais de todos os povos e recusar discussões ou novas reflexões constitui resistência ou postura autoritária. Mesmo que nos chamados “Estudos Culturais” se conviva intelectualmente com ambigüidades ou se embutam reflexões politicamente corretas sobre as questões sócio-culturais das chamadas “minorias” ou se pondere antropologicamente sobre uma ontologia do virtual advinda das complexas interações e intermediações eletrônicas das relações interpessoais, não podemos interditar ou nos esquivar diante destas novas elaborações intelectuais e / ou extrapolações de nossos cada vez mais previsíveis e empobrecidos trâmites pouco universitários e cada vez mais burocrático-acadêmicos.

José Luiz Dutra de Toledo

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