A leitura e os paradigmas

• A leitura como questão

A leitura é tudo na vida. O que é vida? É a realidade. E o que é a leitura para ser tudo na vida? Leitura é muito mais do que ler algo escrito. Ela é uma questão e como questão é maior do que a escrita e o leitor. Numa posição inicial evidente, o leitor é o centro a partir do qual temos que pensar a leitura. Porém, uma vez que esta é uma questão, será no âmbito da questão que teremos que pensar não só o leitor, mas também a própria leitura.

 

• A questão e os paradigmas

A questão é constituída de uma pergunta e de uma resposta, a partir de e sobre a realidade. As diferentes respostas – teorias – tornam-se paradigmas da realidade. A questão diz sempre respeito à realidade e o paradigma diz sempre respeito a uma determinada teoria ou visão da realidade como resposta à questão.

 

• O paradigma e a realidade

A questão é o entre realidade e paradigma. Por que a realidade se torna questão? Porque não sabemos o que somos e o que é a realidade em sua mudança e permanência (vida e morte). Então tudo isso se torna questão e por isso perguntamos para obter uma resposta. Todas as culturas são respostas às questões que a realidade coloca. Explicitamente, no mundo ocidental, quem se colocou a questão do paradigma e o formulou foi Platão. É um paradigma originário: o Eidos (a Idéia). Ele concebeu, assim, o paradigma padrão que orienta até hoje a maioria dos paradigmas no Ocidente. A palavra paradigma se forma do grego: pará: de parte de; entre; durante, por causa de, e do verbo deiknymi: mostrar, fazer ver; produzir; fazer conhecer; revelar; pôr sob os olhos de alguém. O paradigma conjuga então duas dimensões: é um fazer ver, conhecer, mostrar, mas enquanto: de parte de, por causa de, num entre.

Previamente, algo se dá a ver e a conhecer, e se cria um conhecimento através do qual se faz ver o que se mostra. Sem algo se mostrar não pode ser visto. O que se dá a ver é, para os gregos, a physis; para nós, a realidade. Para mostrar o que se dá a ver (a realidade, a physis), o ser humano recebe da própria physis duas dimensões que o constituem, circunscrevem e determinam: o conhecimento (nous, em grego) e a linguagem (logos, em grego). O nous é um conhecimento intuitivo, que permite ver o não visto (teo-ria). E este pode ser dito porque somos constituídos pelo logos, a linguagem (daí ser próprio do ser-humano formular teo-rias, ou seja, paradigmas) . É o nous e o logos a partir da poiesis da realidade que constituem o seu sentido e mundo, procurados nos paradigmas .

 

• A realidade como permanência e mudança

O paradigma tenta apreender o que permanece na mudança. Então o paradigma pode ser de duas naturezas: 1ª. Ontológica: manifesta a referência de physis e de eidos (teo-ria) , realizada como conhecimento (nous) e linguagem (logos): é a realidade como questão. 2ª. Epistêmica: também pode ser simplesmente a relação da linguagem e do conhecimento com o eidos (teoria) ou paradigma, numa relação verdadeira, isto é, numa episteme, e não numa relação de opinião ou doxa, isto é, aparente, não verdadeira. Foi neste horizonte que Platão, o genial pensador, formulou a teoria do eidos (do verbo grego: eido: ver, olhar, imaginar, representar a partir da realidade ou physis). Eidos ou paradigma são, no fundo, o mesmo: e podem vigorar como questões ou conceitos.

Eidos ou Idéia é o paradigma que preside basicamente os demais paradigmas do Ocidente, nas suas mais diferentes formulações. Mas notemos que o Eidos platônico tanto pode ser lido e entendido ontologica como epistemologicamente. Concluindo, podemos dizer que o paradigma se estrutura em torno de diferentes questões: 1ª. O que é a realidade (physis)? 2ª. O que é a verdade (aletheia, em grego)? 3ª. O que é o conhecimento (nous)? 4ª. O que é o conhecimento verdadeiro (episteme), oposto à simples opinião (doxa )? Estas questões foram reunidas numa 5ª. O que é a linguagem (logos)? É que o substantivo logos forma-se do vergo grego leguein, que significa: reunir e dizer. Por isso, a lógica, baseada no logos, tornou-se a doutrina da verdade epistêmica, isto é, científica ou racional. É que a tradução de logos para o latim foi: ratio, ou seja, razão. Só é científico e verdadeiro o que for racional. Paradoxalmente, o mesmo se diz a partir de um paradigma religioso. Porém, este se funda na fé e não na razão. Nem por isso deixa de ser um paradigma, porque a própria ciência se torna uma questão de fé.

E o que tudo isto tem a ver com leitura e leitor? Estas palavras formam-se do verbo latino: legere, que originou o verbo português: ler. Mas o verbo latino legere e o verbo grego leguein têm a mesma raiz indo-européia e os mesmos sentidos: reunir e dizer.

 

• O paradigma e o sistema ou estrutura

Epistemologicamente, o paradigma se constitui de um sistema de conceitos. Estes, na dinâmica contínua da mudança da realidade, procuram dar conta de e estabelecer a permanência, o que não muda. Tal permanência se constitui como estrutura, onde os fatos se concatenam num sistema de relações e correlações opositivas e complementares. Tal sistema é como uma teia ou rede, onde os as linhas e os nós são determinados pelas funções, determinando também estas os agentes no âmbito e alcance dos paradigmas e de sua estrutura. É esta de antemão que estabelece os significados possíveis.

Num paradigma epistêmico, os vazios da rede ficam ignorados e silenciados. Porém, não há rede ou sistema sem o vazio e o silêncio de toda fala, a partir dos quais toda rede pode-se localizar e ser rede. Na estrutura, cada parte é uma função do todo. A parte não tem sentido em si.

 

• O paradigma e o corpo

Ontologicamente, cada parte contém em si o todo. Isto está hoje confirmado pela genética. No todo o paradigma vive da tensão entre questão e conceito. Por isso, no lugar do sistema como organismo, teremos sempre um corpo vivo, numa grande teia da vida, onde as relações são sempre de sentido e mundo. Como corpo, é o seu mundo e sentido que dão não só o alcance do paradigma, como também o que o pode constituir e mudar. O corpo, como manifestação da realidade em mundo e em sentido, acontece na tensão de questão e conceito. Por isso, o corpo é o lugar da memória enquanto tempo, linguagem e poiesis. Toda obra de arte se considera um corpo de sentido e mundo. Tentar reduzi-la a qualquer análise paradigmática epistemológica é anular o que lhe é próprio: a realidade enquanto manifestação de sentido e mundo. Podemos falar em quatro corpos fundamentais: o corpo que cada um tem, o corpo familiar (genos), o corpo social, o corpo Terra ou Gaia, a grande teia da vida.

 

• Os diferentes paradigmas

Os paradigmas podem ser lingüísticos, culturais, religiosos, políticos, filosóficos, científicos, ideológicos etc. Como eles determinam uma relação direta com a realidade natural e social, implicam sempre uma determinada verdade, confundida com a própria realidade. Então a realidade é vista e experimentada no âmbito da verdade, dos valores e das identidades inerentes aos paradigmas em que circunscrevem para cada um e para o grupo social a realidade como verdade.

 

• O paradigma e as leituras

Muitas são as leituras possíveis porque muitos são os paradigmas. Quando o leitor se propõe a fazer uma leitura, esta já é feita dentro de um determinado paradigma. Como sinônimos aproximados de paradigma, poderíamos apontar: cânone, sistema, idéia, corrente crítica, doutrina, disciplina, teoria, ideologia, época, padrão, modelo, arquétipo, idéia exemplar, imaginário, símbolo. Muitas vezes um paradigma geral é subdividido em paradigmas menores. Isso ocorre muito com as disciplinas, subdivididas em diversos campos. A relação dos paradigmas com a realidade se dá através dos conceitos. O conceito é uma questão delimitada pelo alcance e limites dos paradigmas, com suas terminologias, conhecimentos e significados.

 

• O paradigma e o leitor

É claro que todo leitor traz uma carga e motivação pessoal ao fazer uma leitura, dentro do seu horizonte de expectativa, mas sua subjetividade é pré-determinada por um ou mais paradigmas. Com isso, a subjetividade do leitor tende a ser dissolvida na teia dos paradigmas conceituais. Não podemos esquecer que o leitor, todo leitor, ao nascer já está inserido numa determinada língua, cultura, identidade, ambiente, mundo e tradição. Estes delimitam os seus horizontes de possíveis leituras. Nesse caso, a diferença de leituras está na dependência do domínio dos diferentes conhecimentos e vocabulário, inerentes aos paradigmas em que ele está inserido. A aparente diferença de leituras está diretamente relacionada ao domínio do vocabulário e conhecimentos dos paradigmas dominantes, em relação à realidade. Porém, o leitor pode ser mais do que os paradigmas.

 

• O paradigma e a poética

Uma pergunta, naturalmente surge: Toda leitura, todo leitor está determinado pelo paradigma? Pode, mas não necessária e originariamente. Se os paradigmas mudam e não nascem diretamente da realidade como as árvores ou os animais, como eles surgem e podem mudar? A própria palavra paradigma já o diz. Nele há: 1º. A realidade (physis) que se dá a ver; 2º. O ser humano constituído pelo: a – nous intuitivo (que vê em profundidade a partir de um “entre” originário, possibilidade de toda teo-ria); b – logos, pelo qual reúne a manifestação da realidade que se dá a ver e o conhecimento do ver no ser-humano. Notemos bem: dá-se no ser-humano, mas não é este que os cria ou comanda com sua vontade ou razão. Nesse sentido, o ser-humano é constituído pelo logos no diá-logo. O “ diá- “ é um prefixo grego que significa: a) Entre; b) Através de. Na dimensão do “entre”, toda palavra pode se tornar ambígua, como ressonância da própria ambigüidade da realidade (physis ) que, ao mesmo tempo, se manifesta e se vela.

A referência “entre” a realidade E o ser-humano só pode acontecer no e por aquilo que lhes é comum: o agir, ou em grego, o poiein. Sem o agir não há realidade (physis : o que se torna, o que eclode continuamente) nem ser-humano. O próprio do agir é o poético. A realidade muda continuamente pelo vigor que lhe é inerente: o poiein. Esse vigor se faz presente também no ser-humano, mas é nele uma doação da própria realidade (physis ) e não e jamais o resultado do agir da sua vontade ou razão. A essência da realidade (physis) enquanto mudança e permanência é, naturalmente, o agir, o poiein. Todo deiknymi pressupõe o poder se manifestar continuamente da realidade (physis ), porque vigora no poiein , ou seja, ela tanto mais se manifesta quanto mais se retrai, vela e guarda poeticamente. O ser-humano se constitui como ser-humano ao ocupar o lugar do entre, no qual e pelo qual lhe é dado também o vigor inerente ao mudar (manifestar, desvelar-se) e permanecer (velar-se e guardar-se), isto é, o poiein, o agir. No e pelo agir poético, que a physis lhe dá, o ser-humano está sempre num paradigma, mas também o precede e sucede, porque é no e pelo poiein que os próprios paradigmas se constituem e são mudados e substituídos. O agir poético precede e está além de todo paradigma, embora esteja radicalmente a ele relacionado, porque somos seres do “entre” manifestar e velar da realidade (physis). No e pelo agir poético é que os paradigmas chegam a se tornar paradigmas, ou seja, é que a realidade (physis) se plenifica como realidade (physis). Então os elementos essenciais dos paradigmas: o conheciemento (nous) e a linguagem (logos) recebem, enquanto sentido e mundo, sua essência da própria essência da realidade (physis), isto é, do poiein da realidade (physis). Nessa constatação, a poiesis é a essência da própria realidade (physis) se manifestando como conhecimento e linguagem: paradigma. Este só pode vigorar enquanto mundo e sentido. Mas ele só chega a ser o que é pela poiesis. É nesse sentido que as obras poéticas são a própria realidade se manifestando e velando como obras (o que opera e age), isto é, paradigmas poéticos (questões/corpo) e não e jamais só epistemológicos (conceitos/organismos).

As obras poéticas, como corpo, exigem, pois, uma leitura poética. E só esta pode auscultar a realidade dando-se como mundo e sentido nas obras poéticas. A poética, como essência do próprio agir da realidade, não se constitui jamais só de paradigmas conceituais epistemológicos. Nelas, a realidade (physis ) se manifesta e vela como paradigmas ontológicos. A leitura que se abre para a escuta da fala da realidade como logos e nous é o que entendemos como leitura poética. Aí o leitor só é leitor quando se abre para a fala do logos e do nous, enquanto diá-logo de escuta. Toda leitura poética é um diá-logo de escuta do logos da realidade (physis) que se dá como ser e conhecer/pensar (einai e noein : “... pois o mesmo é pensar e ser. Fragmento III, de Parmênides).

Uma leitura poética é aquela que se localiza e move dentro e a partir do questionar: lê-se para questionar e questiona-se para ler e ser. Ao agir concreto do distinguir e diferenciar é que se denomina, com precisão, uma leitura poética, pelo exercício concreto do dialogar enquanto escuta do logos, segundo o fragmento 50 de Heráclito: “Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um.”

Manuel Antônio de Castro

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