UM URINOL
FAZ 90 ANOS

          Você sabia que o urinol que Marcel Duchamp mandou para o Salão dos Independentes, em Nova York (1917), está completando 90 anos e foi eleito a obra mais importante que tudo o que se produziu em artes plásticas no século XX?
          Você sabia que, na verdade, o urinol de parede, que Duchamp intitulou de “Fonte” e assinou como sendo de R. Mutt, produzido pela J. L. Motta Iron Works Company, nem chegou a ser exibido naquele salão, porque foi censurado e a peça original, relegada, desapareceu.
          Você sabia que a obra considerada fundadora da contemporaneidade, portanto, não existiu, foi uma simples idéia e que permaneceu “in absentia” até os anos 1940, quando Duchamp começou a fazer réplicas dela para vários museus, e que, em 1990, a Tate Galery pagou um milhão de libras por uma dessas cópias?
          Você sabia que a polêmica fomentada na ocasião pelos jornais de Nova York foi organizada pelo próprio Duchamp, sua amante Beatrice Wood e pelo seu marchand Arensberger?
          Você sabia que embora Duchamp dissesse que o urinol era apenas um urinol, um objeto deslocado de suas funções, alguns críticos, como George Dickie, começaram a ver nessa porcelana as mesmas virtudes plásticas das obras de Brancusi?
          Você sabia que outros críticos, -já que o urinol havia desaparecido, começaram a ver na fotografia do mesmo feita por Stieglitz uma referência à deusa Vênus, que surgiu das águas?
          Você sabia que outros críticos considerando bem a fotografia do urinol concluíram que ali estava projetada a efígie de Nossa Senhora?
          Você sabia que a mulher do músico de vanguarda Eduardo Varese sustentava que o urinol era a reprodução da imagem de Buda?
          Você sabia que Duchamp, embora dissesse que o artista não deve se repetir, mandou fazer várias réplicas desse urinol para vender para museus, e confeccionou uma caixa portátil com miniaturas de suas obras para vender também para museus e colecionadores?
          Você sabia que o homem que dizia que a pintura estava morta era marchand e vendia quadros e esculturas de seu colegas?
          Você sabia que em 1993, numa exposição em Nîmes, o artista francês Pierre Pinnocelli se aproximou de um dos urinóis de Duchamp e decidiu se “apropriar” da obra, primeiro urinando nela e dizendo que o fato de ter urinado nela a obra de Duchamp agora lhe pertencia?
          Você sabia que depois de ter urinado no urinol, Pinnocelli, pegou um martelo e quebrou a obra de Duchamp com o argumento de que agora a obra era dele, ele havia se “apropriado” conceitualmente dela.
          Você sabia que ele foi processado pelo estado francês que lhe exigiu uma hipoteca de 300.000 francos e que a questão deixou de ser estética para ser policial e até o Ministro da Justiça e da Cultura na França tiveram que opinar?
          Você sabia que o mesmo Pinnocelli em 2005, obcecado pelo urinol, insistindo que o urinol é de quem “intervém” nele, atacou a marteladas a cópia dessa obra no Beaubourg, em Paris, o que provocou novos problemas com a polícia?
          Você sabia que esse urinol comprado originalmente em loja de ferragens, com a assinatura de Duchamp vale hoje US$3.6 milhões?
          Você sabia que Sherry Levine mandou fazer uma réplica de bronze dourado do urinol entronizando de vez a obra como uma espécie de Mona Lisa de nossa época?
          Você sabia que Duchamp dizia que o nome “Mutt” que botou no urinol, como sendo o do pretenso autor (que era ele mesmo) era uma homenagem aos personagens em quadrinho- Mutt e Jeff?
          Você sabia que mesmo assim Jean Clair- considerado o maior crítico francês da atualidade-, prefere entender que “Mutt” remete para uma gíria em inglês significando “imbecil” e que o pseudônimo “R. Mutt” lembra “armut, que em alemão significa “indigência”, “penúria”?
          Você sabia que Calvin Tomkins -o biógrafo de Duchamp acha que aquele urinol é a imagem que Duchamp tinha da mulher como receptáculo do líquido masculino, em consonância com os futuristas italianos que diziam que a mulher era um “urinol de carne”?

Affonso Romano de Sant'Anna

Texto ublicado no Estado de Minas/ Correio Braziliense, em 7.10.2007

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