AS SOMBRAS DAS COISAS

          No aeroporto, à espera de um amigo, acomodei-me no café e acendi um cigarro, praticando um dos meus vícios mais prazerosos, observar o ser humano: as suas expressões, como vestem-se, a personagem que representam, suas doenças psíquicas profundas e toda a mecânica de suas vidas. É agradável uma pessoa relaxar, abrir bem os olhos e os ouvidos, não pensar em todos os estúpidos afazeres que o dia exige de nós e acompanhar as vidas alheias. Do portão de chegada surgiram inúmeros patrícios, sorridentes ou assustados, prontos para refazer caminhos num novo país ou para cerzir o que se rasgou. Vi mulheres cheias de juventude e de brilho, adolescentes caipiras, gente com alma de criança e flor, espíritos agrestes e perigosos. Todos com uma só finalidade: vencer, de uma certa forma, no estrangeiro.

          O que farão para sobreviver? Quem os espera? Como serão acolhidos? O que sabem de Portugal? Terão protecção e couraça contra o assolador mundo europeu? Lembrei-me da minha chegada em 1994, em Espanha, sem falar ainda outro idioma além do português, inocente e jovem, muitíssimo jovem. Tudo pareceu-me maravilhoso, cintilante, incendiado no íntimo por uma delicada luz divina, cheio de encanto e harmonia. Logo surgiriam as sombras das coisas: solidão, indiferença, exploração, medos, dificuldades várias, saudade, conflitos, decepções. Tive a sorte do meu ser, da minha filosofia, do meu temperamento e carácter voarem nas asas da sensação de ressurreição através de uma intensa vida cultural, pousando em museus, leituras, concertos e cinematecas. Caso contrário, não teria resistido muitos meses, e voltaria para casa com o rabo entre as pernas. Mas como enfrentam tais dificuldades os emigrantes que acreditam que ficarão ricos? Que trabalham doze horas ao dia e ganham um salário infame? Que vivem num perpétuo gueto e não evoluem os seus costumes? Que mal sabem a história, geografia ou cultura do país adoptado para viver? Que não meditam, não lêem, não pensam ou não ouvem o silêncio?

          Por muito simpático e benéfico que me pareça o meu jogo “voyeur” privado, e o que seria do escritor se não se apoiasse na vontade de perseguir a verdade, senti uma espécie de estremecimento e alguma compaixão, nesta manhã ensolarada num aeroporto, por toda a multidão perfumada de esperança, pronta para uma vida renovada. Pensei em gritar, como um louco: “Voltem, estão enganados, ninguém aqui saberá amá-los! Não existe qualquer espécie de fortuna monetária nesta Terra. Portugal beira a bancarrota e o seu povo dorme o sono profundo dos desiludidos”. Calei-me. Não sou um juiz de costumes. Não tenho também os meus desejos que nem toda a gente aprovaria? Não havia o que remediar. Trabalharam meses para comprar um bilhete aéreo, contraíram dívidas, fizeram promessas de vitória às pessoas mais amadas, rezaram para todos os santos, choraram ao deixar o Brasil, e agora estão aqui, heróis trágicos prontos para sucumbir na sua própria justeza. Todos tem o direito de tentar, de crer nos seus sonhos, de descobrir os seus próprios caminhos. É mais do que óbvio.

          Quando o meu amigo chegou, vindo apenas na condição de turista, eu tinha lágrimas nos olhos, ainda pensando nos mil e um bordéis que exterminam o meu povo, pensando nos mil e um cafés e restaurantes empregando gente capacitada para voos mais altos, pensando nos mil e um prédios em construção ou reforma dobrando a resistência e a saúde de toda uma raça. Tudo me pareceu, no seu significado e valor, estéril e insatisfeito. Recordei imediatamente das palavras de um cruel empresário na semana passada: “O emprego é seu nestas condições. Caso não queira, existem centenas de outros brasileiros dispostos a aceitá-lo”. As condições: horário repartido, treze horas de trabalho ao dia durante seis dias na semana, 600 euros de salário. Não aceitei. Mas quantos poderiam fazer o mesmo? A condição de imigrante em países pobres como Portugal é inexplicável e absurda, e mesmo assim a cada dia surgem inúmeros brasileiros dispostos a viver ao extremo, a superar obstáculos cada vez mais perversos. O que é grande ou pequeno, importante ou não para eles? Será que sabem que o que fazem não tem sentido? O que não quer dizer que não possa ter alguma recompensa. A sorte, vez ou outra, é Senhora.

          Antes de entrar no táxi com o meu amigo, de novo no meu mundo e clausura, sorri para uma mineira de longos e sedosos cabelos, desejando secretamente toda a sorte do mundo para ela. Mas, meu caro leitor, ela será capaz de reagir a ofensas da sua dignidade de um modo firme? Suportará sofrimentos e desenganos? Será pisada muito tempo sem que repare nisso? Aceitará sem queixas gritos e humilhações? Nada é fácil, e uma nova vida num país estrangeiro muito menos, mas já que estamos aqui, vamos pelo menos reafirmar a nossa criatividade, sensualidade e solidariedade. Com certeza é a forma mais honesta de salvar-se do animalesco.

Antonio Naud Júnior
(em Lisboa)

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