POR UMA NOVA MODERNIDADE

“O excelente Hugo Friedrich” – assim se refere Luiz Costa Lima ao crítico alemão (1904-1978), que escreveu um livro de notável circulação entre estudantes de Letras e interessados em poesia: Estrutura da Lírica Moderna (1956). Como bom romanista, Hugo Friedrich centra sua explicação (bem como seu desapontamento) sobre as tendências manifestas da modernidade em poesia, a partir do século XIX, na obra de três poetas franceses: Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. O trio infernal teria transmitido à lírica características altamente negativas que, por sua vez, se consolidaram numa “estrutura estilística” da qual é impossível escapar. O agudo hermetismo, a prática da metaliteratura e a fuga da realidade empírica constituiriam, para o crítico, os resultados mais evidentes que legaram aqueles poetas. Esse conjunto teria ainda derivado para a transcendência vazia de muitos poemas, bem como para a ausência de fins comunicativos e para o horror às relações causais, entre outras enfermidades modernas.

Sistemático, sintético, eficaz e explicativo – eis alguns dos adjetivos de que se utiliza Alfonso Berardinelli em “As Muitas Vozes da Poesia Moderna”, o ensaio central do livro Da Poesia à Prosa (Cosac Naify, 213p., R$55), para tratar do clássico de Hugo Friedrich. Mas o elogio é estratégico e apenas provisório. O crítico italiano, ex-professor da Universidade de Veneza, combate ao ponto da indignação a tese fundamental de Estrutura da Lírica Moderna, manifestando-se perplexo com o esquecimento da “pluralidade de vozes que agem ou podem agir na poesia”. Em seguida, menciona as flagrantes “zonas de esquecimento” do livro alemão, assim como “a idéia de uma linha evolutiva” que também teria omitido poetas do porte de Leopardi, Hölderlin e Coleridge. O resultado de tal percepção será, por fim, o “triunfo dos epígonos”, ou seja, a ênfase em poetas que estão no centro da discussão para Hugo Friedrich, mas que pouco acrescentariam ao que já fora analisado com relação a Mallarmé. Estrutura da Lírica Moderna estaria marcado, portanto, por uma predisposição do seu autor para singularizar um vetor da modernidade, convertendo-o em força predominante.

Nos anos 50, o esforço talvez se justificasse diante da perplexidade do público por conta dos experimentalismos e das linguagens de vanguarda. Mas Alfonso Berardinelli se mostra inflexível na sua denúncia sobre a desvalorização, naquele livro, de figuras centrais da lírica ocidental, tais como W. B. Yeats, R. M. Rilke, V. Maiakóvski, Wallace Stevens, K. Kaváfis, entre muitos outros que ocuparam as três primeiras décadas do século XX; posteriormente, foram esquecidos B. Brecht e W. H. Auden. As análises empreendidas por Hugo Friedrich, ademais, dissociam os poemas do conjunto da obra e cada autor, assim como “da relação entre transformações formais e autoconsciência histórico-cultural.” Por fim, o crítico italiano acredita que o século XX não estaria caracterizado, na lírica, pela centralidade de Mallarmé, e sim por modelos que denomina de impuros e contraditórios, entre os quais é obrigatória a inclusão de Walt Whitman – poeta citado apenas de passagem em Estrutura da Lírica Moderna .

Não é a primeira vez que o livro afinal equívoco de Hugo Friedrich recebe punch tão vigoroso. Embora não estejam mencionadas em Da Poesia à Prosa , originalmente publicado em 1994, devem ser lembradas as penetrantes reservas de Paul de Man ao afirmar que a lírica modernista poderia ser indecifrável não pelo que deixava de dizer, mas por dizer demais... Michael Hamburger, em A Verdade da Poesia (1969), dedica algumas páginas para reprovar a unilateralidade ( one-sidedness ) de Hugo Friedrich, irritando-se com a seqüência de generalizações e citações tiradas do contexto. Na crítica francesa, Henri Meschonnic e, mais recentemente, Jean-Claude Pinson também se insurgiram contra a interpretação de uma modernidade coisificada e alienada do sujeito histórico. E Luiz Costa Lima, saliente-se, também observa a necessidade de que o crítico literário possua uma “base de reconhecimento social da literatura”, sem o que estará transformado em “puro intérprete de obras”, ainda que excelente...

Inevitavelmente, parte expressiva dos oito ensaios que formam Da Poesia à Prosa está marcada pelo diálogo, em desafio, às teses de Hugo Friedrich. Em “Baudelaire em Prosa”, por exemplo, escreve-se um texto de admiração que desenvolve a idéia da existência de um prosador no poeta de As Flores do Mal (1857), fazendo de Charles Baudelaire um sujeito submetido a tensões opostas e caracteristicamente bifronte. Haveria no escritor francês um moralista cuja “estrutura do discurso” se utilizou de instrumentos da prosa para se comunicar: sintaxe clássica e temas de natureza autobiográfica e confessional jamais convergiram, como acontecia com os poetas simbolistas, para a depuração e a despersonalização. Nesse trabalho de refinada análise, a combinar a leitura cerrada do texto literário com informações biográficas, Alfonso Berardinelli demonstra que a modernidade dos Pequenos Poemas em Prosa (1864), juntando “evasão impossível e denúncia impotente”, difere muito da que propôs Hugo Friedrich.

Outro ensaio de interesse é “Quatro Tipos de Obscuridade”, que estende a peleja com o crítico alemão na procura de uma síntese sobre os elementos de solidão, mistério, provocação e jargão que caracterizariam um segmento da lírica. Alfonso Berardinelli, em especial quando demonstra seu profundo conhecimento da poesia italiana moderna, está movido por um consciente desejo de modificar o cânone. Suas escolhas (por exemplo, ao alçar Guido Gozzano a uma das vozes poéticas essenciais do século) devem ser consideradas como uma contribuição valiosa para a discussão da lírica, que convida à discussão sobre a mudança de rumos na compreensão da modernidade literária.

A tradução de Maurício Santana Dias é fluente e transmite a elegante exposição do crítico. A edição brasileira, organizada e prefaciada por Maria Betânia Amoroso, acrescenta dois ensaios à italiana. A cuidadosa edição tem todos os méritos – menos o de estar ao alcance do estudante universitário, que poderá preferir o livro de Hugo Friedrich por este lhe parecer um simples manual, sem qualquer luxo de encadernação, e afinal pelo bom preço.

Felipe Fortuna

Publicado no Jornal do Brasil, Caderno Idéias & Livros, em 29 de setembro de 2007
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