O CRU E O COZIDO
(Abertura - 1 - Fragmento)

(...) Um etnólogom trabalhando na América do Sul, espantou-se com o modo como os mitos chegavam a ele: "Cada narrador ou quase conta as histórias a seu modo. Mesmo para os detalhes importantes, a margem de variação é enorme...". W, no entanto, os indígenas não pareciam sensibilizar-se com essa situação: "Um karajá que me acompanhava de aldeia em aldeia ouviu muitas variantes desse tipo e recebeu-as com uma confiança quase idêntica. Não que ele não percebesse as contradições. Mas não tinha o mínimo interesse por elas..." (Lipkind 1940:251). Um comentador ingênuo, procedente de um outro planeta, poderia se espantar, com mais razão (já que se trata então de história e não de mito), que, na massa de obras consagradas à Revbolução Francesa, os mesmos incidentes não sejam sempre mencionados ou ignorados, e que os relatados por vários autores apareçam sob óticas diferentes. E, no entanto, essas variantes se referem ao mesmo país, ao mesmo período, aos mesmos acontecimentos, cuja realidade se espalha por todos os planos de uma estrutura em camadas. O critério de validade não se prende, portanto, aos elementos da histórias. Perseguidos isoladamente, cada um deles seria inatingível. Mas ao menos alguns deles adquirem consistência, pelo fato de poderem integrar-se numa série cujos termos recebem mais ou menos credibilidade, dependendo de sua coerência global.
(...) O que importa é que o espírito humano, indiferente à identidade de seus mensageiros ocasinais, manifesta aí uma estrutura cada vez mais intelegível, à medida que avança o processo duplamente reflexivo de dois pensamentos agindo um sobre o outro e, nesse processo, ora um, ora outro pode ser a mecha ou a faísca de cuja aproximação resultará a iluminação de ambos. E, se esta vier a revelar um tesouro, não haverá necessidade de árbitro para proceder à partilha, já que reconhecemos logo de início (Lévi-Strauss 1962a) que a herança é inalienável e que deve ser mantida indivisa.

Claude Lévi-Strauss

Do livro: O Cru e o Cozido, in Mitológicas 1, trad. Beatriz Perrone-Moisés, Cosaca & Naify, 2004, SP

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