Poesia e síntese
Uma coisa que sempre me surpreende na poesia popular nordestina é a capacidade de síntese dos poetas. Em poucas palavras, arrumadas em um estrofe de seis linhas conhecida como sextilha, o poeta consegue expressar de forma completa um pensamento, um sentimento, uma idéia ou até mesmo resumir uma história.
Veja, por exemplo, a primeira estrofe do folheto de cordel “O Pavão Misterioso, da autoria de José Camelo de Melo Rezende: “Eu vou contar a história/ De um pavão misterioso/ Que levantou vôo da Grécia/ Com um rapaz corajoso/ Raptando uma Condessa/ Filha de um conde orgulhoso...” Apenas com uma estrofe o poeta situa a história, transmite o clima de aventura e perigo e introduz o conflito da trama, que se estabelece entre o rapaz e o conde, em disputa pelo amor da Condessa; de quebra, caracteriza os personagens, atribuindo coragem ao rapaz, orgulho ao conde e beleza à tal condessa, é claro, que ninguém vai se dar ao trabalho de raptar mulher feia.
Quer outro exemplo? Pergunte a qualquer pessoa quais são as três piores coisas do mundo, e peça para explicar por que. Nove entre dez mortais vão passar uma hora explicando e gastando palavras. O poeta não. Veja essa décima (estrofe de dez linhas) atribuída a Louro Branco que responde à sua pergunta: “Um grande sábio profundo/ Me perguntou certa vez/ Se eu conhecia as três/ Piores coisas do mundo/ Lhe respondi num segundo/ E lhe dei explicação:/ - Doido, mulher e ladrão./ Doido não tem paciência/ Ladrão não tem consciência/ E mulher não tem coração.” Sintético, enxuto, exato, na medida. Uma estrofe perfeita.
Outra da qual gosto muito é uma sextilha atribuída ao poeta pernambucano Antonio Marinho, sogro do não menos famoso vate Lourival Batista, dos Batistas de São José do Egito. Sobre a saudade, fala Antonio Marinho: “Quem quiser plantar saudade/ Escalde bem a semente/ Plante num lugar bem seco/ Quando o sol tiver bem quente/ Pois se plantar no molhado/ Ela cresce e mata a gente.”
A quem estiver estranhando essa coisa de “atribuído a...” explico que na poesia popular essa questão de autoria é assim mesmo meio nebulosa, meio confusa, meio incerta. Para não errar, prefiro dizer que o verso é “atribuído a” do que fechar questão quanto ao autor.
Outro primor da síntese é uma estrofe que escutei por aí, da qual não sei o criador: “O baralho tem quatro ás/ Quatro dois e quatro três/ Quatro quatro e quatro cinco/ Quatro nove e quatro seis/ Quatro oito e quatro sete/ Quatro dez, quatro valete/ Quatro dama e quatro reis.”
Não poderia concluir este registro sem falar em Rosil Cavalcanti, compositor genial de obras musicais como “Sebastiana”, “Tropeiros da Borborema”, e tantas outras. Basta dizer que Rosil foi aceito na Academia de Letras de Campina Grande apenas pelas suas letras, apenas pelas suas composições, sem nunca haver escrito um livro. A cadeira do qual foi patrono e fundador foi depois ocupada por meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares, coisa que muito nos gratificou. Rosil Cavalcati é o autor de “Moxotó”, cuja letra é um verdadeiro e estudo sociológico da região que ele descreve na canção, com todas as suas características geográficas, econômicas, antropológicas e sociais: “Você precisa conhecer uma terra boa/ Você precisa conhecer o Moxotó/ Pra ver o cabra entrar no mato encourado/ Derrubar touro montado/ Pegar cobra e dar um nó./ Lá tem vaqueiro que emborca no carquejo/ Quebrando arapiraca/ Tem sim senhor/ Tem caçador que pega onça de mão/ E sangra de faca/ Tem sim senhor/ Tem fazendeiro que morre e não sabe/ Quantas reses tem/ E tem morena de fala doce e amena/ Que em outra terra não tem/ Isso também tem...” Oitenta palavras e toda a região passa como um filme, à sua frente! Genial.
Clotilde Tavares